Thursday, December 27, 2007

"O maior drama da humanidade" - Rui Tavares - Público

Qual é o maior drama da humanidade? A guerra, a fome, as doenças, a miséria, a ignorância, o fanatismo, a violência, as catástrofes ambientais, a indiferença pelo sofrimento dos outros? Não, O maior drama da humanidade, segundo o cardeal-patriarca de Lisboa, é o ateísmo. O ateísmo é aquela opinião, hoje em dia trivial, de a que a existência de Deus é altamente improvável ou mesmo impossível. Mas não é bizarro que, nos dias de hoje, e com tanto por onde escolher, mesmo um cardeal designe tal ideia como "o maior drama da humanidade"? Aquele superlativo deixa implícito que qualquer outro drama, por grande que seja, é afinal menor do que o ateísmo, em toda e qualquer forma, desde todo o sempre. "Todas as formas de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade", disse José Policarpo na homilia de Natal.

O que explica que se consiga dizer isto? Uma característica curiosa da linguagem religiosa que verificaremos através de um exemplo prático. Em princípio, concordaremos todos que a guerra causa mais devastação do que o ateísmo. Mas se por "guerra" entendermos um momento ou circunstância em que os homens "negam ou se esquecem de Deus", logo a palavra "guerra" cabe dentro da definição de "ateísmo" do cardeal. Assim será possível dizer que o "ateísmo" é o maior drama da humanidade, de que a guerra passou simplesmente a ser uma manifestação. E o mais fascinante é que isto pode incluir até as guerras religiosas.

Nesta redefinição, o cardeal não quer dizer que ser ateu é pior do que matar alguém, mas que matar alguém é, por definição, uma forma de nos esquecermos de Deus e, por extensão, uma forma de ateísmo. Continua a ser absurdo, mas ao menos não é tão imoral.

Porquê, então, o ateísmo? Explicou o cardeal: "Os diversos ateísmos, nas mais variadas expressões, tiveram origem neste reduzir a esperança humana à dimensão da história", mas "nenhuma esperança deste mundo anula a esperança na vida eterna". Contra esta ideia de que a "esperança na vida eterna" é mais virtuosa do que a vida que temos, poderíamos lembrar que os bombistas suicidas matam pessoas às centenas com base numa "esperança na vida eterna". Mas não vale a pena. Isso seria apenas reeditar o debate inicial (o cardeal poderia dizer que os fundamentalistas "se afastaram de Deus" e o terrorismo religioso seria redefinido como uma espécie de ateísmo inconsciente).

Alguém lembrará que José Policarpo falava apenas para os fiéis, a quem estas palavras despertam outros sentidos. Pode ser. Mas esse é um dos problemas de falar para dentro e, em particular, da "viragem europeia" que Bento XVI impôs no Vaticano. Para poder combater a irreligiosidade na Europa, a prioridade passou a ser a doutrina, em detrimento dos problemas que realmente causam sofrimento à humanidade em todos os continentes. A estratégia é errada e, se os europeus virem a Igreja mais preocupada com jogos de linguagem do que com o sofrimento real, acabará por agravar ambos os problemas. Mas ao menos explica porque vê o cardeal como "maior drama da humanidade" aquilo que, afinal, é mais um drama da Igreja europeia.


Rui Tavares, Público de hoje

Sunday, October 28, 2007

Otário na favela (de Paulo Moura)

Caco Barcellos é um jornalista brasileiro que trabalha nas favelas. Já teve programas na televisão, escreveu vários livros. Em Rota 66, investigou os esquadrões da morte da polícia de São Paulo. Em Abusado, mergulha no mundo dos traficantes de droga que operam nas favelas do Rio de Janeiro. Ambos os livros são best-sellers e revelaram o lado mais negro da realidade brasileira. Ninguém, como Caco, tinha alguma vez imergido nos submundos das grandes cidades do Brasil. Nenhum jornalista, nenhum investigador ou mesmo polícia tinha alguma vez conseguido ganhar a confiança dos líderes do mundo do crime, das autoridades marginais dos bairros pobres.

Para espanto de todos, Caco Barcellos, nos últimos 20 anos, praticamente vive nas favelas. Aprendeu os seus códigos de comportamento, a sua linguagem. Teve de convencer os seus habitantes de que não é um "X9" (agente da polícia infiltrado), nem um "vacilão" (cobarde). Mostrou que não "amarela" (ter medo) nos íngremes becos de lama do morro e que não é movido por qualquer interesse desonesto - ou seja, é apenas um "otário" que mora lá em baixo no asfalto.

Para os habitantes da favela, um cidadão honesto é considerado um otário, o que faz algum sentido. Na sua perspectiva, os ricos não são honestos e os pobres que o forem são otários. Caco é um "otário" e não se importa. É, aliás, esse o papel que escolheu e que lhe permite fazer jornalismo independente e sério. Porque é difícil passar tempo na favela e não ser conivente com os crimes que são cometidos todos os dias. Caco explicou isso aos seus interlocutores: se souber que alguém vai ser assassinado, terá a obrigação de avisar a vítima. Se assistir a um roubo, uma violação ou um massacre, ver-se-á forçado a chamar a polícia, a denunciar os culpados. Como resolver este problema?

O repórter encontrou uma solução: não quer conhecer histórias do presente, só do passado. Desde o início, pede a todos que não lhe contem nada do que está a acontecer, do que estão a fazer. Na presunção de que as actividades das personagens que investiga serão pouco recomendáveis, prefere ignorá-las. Essa é a única forma de poder manter o convívio. Já as histórias do passado são bem-vindas. Por mais sanguinárias que se revelem, não há nada a fazer. Estão consumadas. Conhecê-las não faz do jornalista cúmplice.

A estratégia é simultaneamente simples e genial. Permite penetrar subtilmente na radical inocência dos actos humanos. Compreendê-los, sem a interferência do julgamento. O segredo é permanecer um passo atrás no tempo. Olhar tudo a uma certa distância, mesmo estando muito próximo, mesmo estando lá.

Nos primeiros anos, foi duro. Uma barreira de desconfiança impedia o acesso de Caco à realidade que queria conhecer e descrever. Mas depois tudo mudou. Os habitantes da favela perceberam que o trabalho do jornalista não os prejudicava. Antes lhes dava voz e dignidade. E passaram a ser eles a disputar a atenção de Caco, a querer contar as suas histórias, apresentar as suas queixas.

Agora, desde as vielas ensopadas de esgoto do morro da Dona Marta, as crianças costumam correr atrás dele, conta Caco. Meninos de 10 ou 11 anos gritam-lhe, com ar trocista: "Eh, otário! Quer conhecer as histórias do meu passado?"


Paulo Moura, Público de 28-10-2007

Tuesday, October 09, 2007

Analfabetos... mas diplomados (Santana Castilho)

As comemorações do 5 de Outubro foram marcadas pelo discurso de Cavaco Silva, que escolheu a educação para tema principal. Poderia analisar as palavras do Presidente da República cruzando o que agora disse com o que fez quando era primeiro-ministro. Ou pondo em confronto a crítica à política seguida para o sector, implícita no verbo cuidado de hoje, com o apoio explicitado em actos precipitados de ontem, que tanto serviram a mesma política. Prefiro aproveitar, interesseiramente, o efémero sobressalto que as palavras do Presidente provocaram na consciência do país para, explorando essa sensibilidade passageira, pôr em evidência alguns factos que me parecem relevantes, a saber:

1. Abundaram, nas análises que se seguiram, as habituais retóricas que transformaram o círculo num quadrado. Sócrates destacou-se. Viu no discurso um incentivo ao seu Governo, mesmo que Cavaco tenha considerado uma perda de tempo a desastrosa produção legislativa que o caracteriza e que António Barreto tão bem ridicularizou no último artigo aqui dado à estampa. Mesmo que Cavaco tenha remetido para o limbo do esquecimento a febre tecnológica de fachada, que transformou ministros em vendedores da TMN, e tenha preferido pôr a tónica nos recursos humanos da educação. Mesmo que o Presidente tenha apelado para o envolvimento das comunidades na escola, enquanto o Governo prossegue numa política centralizadora e recuperadora das mais retrógradas lógicas de hierarquia vertical. Mesmo que Cavaco tenha pedido respeito pelos professores, enquanto o Governo tudo tem feito em sentido contrário.

2. Maria de Lurdes Rodrigues e Mariano Gago primaram pela ausência, não ouvindo, de viva voz, o discurso que interessava às áreas que tutelam e foi conhecido com antecedência. Podem assessores debitar justificações evasivas, que não apagam o significado político do facto. Tanto mais quanto é patente, no caso da primeira, a aversão que tem a perguntas incómodas e a inabilidade visceral para resistir a palcos adversos.

3. O apelo do Presidente da República para que os cidadãos e as autarquias aumentem a participação na vida das escolas é apenas mais um, retórico e inconsequente. A realidade pode ser dura, mas não está dissimulada: a maioria não se preocupa com as escolas nem com o que lá se aprende, mas com o diploma. A maioria, tal como o Governo, não se incomoda particularmente com o facto de o sistema gerar analfabetos... desde que os diplome. Participação? A lei vigente prevê, há anos, o funcionamento dos Conselhos Municipais de Educação. Que resultados se conhecem? Quantos funcionam?

4. Se a Escola Pública, que a República democratizou, tivesse logrado formar os cidadãos que almejava, não seria possível termos hoje um desemprego de professores como nunca foi visto; uma precariedade da profissão docente nunca imaginada; um regime de avaliação dos profissionais do ensino injusto, retrógrado, grosseiramente impracticável, que trará o caos às escolas; um Ministério da Educação que não cumpre as leis que cria e é condenado continuadamente nos tribunais, sem consequências de natureza política. Se a Escola Pública tivesse logrado formar os cidadãos que devia, não teríamos um primeiro-ministro a ousar aconselhar os jornalistas a não confundirem os professores com os sindicatos, como se não fosse bem mais expressiva a relação entre estes que aquela que existe entre os filiados do partido político pelo qual foi eleito e os portugueses independentes de qualquer canga partidária! Professor do ensino superior

Santana Castilho, Público de hoje

Sunday, October 07, 2007

Adeus tristeza (Fernando Tordo)

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Na minha vida tive palmas e fracassos
Fui amargura feita notas e compassos
Aconteceu-me estar no palco atrás do pano
Tive a promessa de um contrato por um ano
A entrevista que era boa
E o meu futuro foi aquilo que se viu


Na minha vida tive beijos e empurrões
Esqueci a fome num banquete de ilusões
Não entendi a maior parte dos amores
Só percebi que alguns deixaram muitas dores
Fiz as cantigas que afinal ninguém ouviu
E o meu futuro foi aquilo que se viu


[Refrão:]
Adeus tristeza, até depois
Chamo-te triste por sentir que entre os dois
Não há mais nada pra fazer ou conversar
Chegou a hora de acabar


Na minha vida fiz viagens de ida e volta
Cantei de tudo por ser um cantor à solta
Devagarinho num couplé pra começar
Com muita força no refrão que é popular
Mas outra vez a triste sorte não sorriu
E o meu futuro foi aquilo que se viu

[Refrão]


Na minha vida fui sempre um outro qualquer
Era tão fácil, bastava apenas escolher
Escolher-me a mim, pensei que isso era vaidade
Mas já passou, não sou melhor mas sou verdade
Não ando cá para sofrer mas para viver
E o meu futuro há-de ser o que eu quiser


Fernando Tordo

A corrupção do Estado (Vasco Pulido Valente)

A entrevista que João Cravinho deu na última quinta-feira é indispensável para perceber a corrupção. Cravinho diz duas coisas de uma importância crucial, em que esta coluna tem de resto insistido. Primeiro que o grosso da corrupção "se faz", com uma ou outra "entorse" imperceptível, "de acordo com a lei". Segundo, que por isso mesmo a polícia e os tribunais não podem ir longe e só se ocupam de casos menores. No fundo o Apito Dourado e operações do género são um espectáculo, que esconde os crimes de consequência. Com grande coragem, Cravinho explica qual é o problema: e o problema é o de que certos lobbies se apoderaram de "órgãos vitais de decisões" do Estado ou dos departamentos que as preparam. Ou, se quiserem, o de que o Estado se tornou o principal agente de corrupção.

Isto significa que o Estado serve, não o interesse do país, como compreendido por este ou aquele partido, mas sim o interesse do lobbies com mais poder ou influência. E, no entanto, nunca se fala disto, embora toda a gente o saiba ou suspeite, a começar pelo Presidente da República, porque os "negócios" conseguem inspirar um respeito e um temor que, por exemplo, o futebol não consegue e que manifestamente coíbem a imprensa e a televisão. O que se passa no interior de certos ministérios de que depende a orientação da economia nunca chega à rua. Como nunca chega à rua quem perdeu e ganhou com os "projectos", que o Estado autoriza ou financia. Ou quem é e donde vem o impecável pessoal que manda nisso tudo. Ainda anteontem o dr. Cavaco exigiu novas leis para assegurar o que ele chama a "transparência da vida pública". Infelizmente, novas leis não bastam.

Cravinho descreve o "choque" que sofreu com a complacência do PS perante a corrupção do Estado. Sofreria com certeza um "choque" igual, e talvez pior, no PSD. A verdade é que o "bloco central" se fundiu com o Estado. Não existe um Estado independente do "bloco central" e muito menos dos "negócios", que o apoiam e sustentam: da banca e da energia a quatro ou cindo escritórios de advogados. Cravinho, como Cavaco, não percebeu, ou preferiu omitir, que hoje não se trata de reformar uma parte inaceitável do regime, mas pura e simplesmente de mudar o regime. Se por acaso caísse do céu a "transparência" que o dr. Cavaco deseja, metade da primorosa elite do nosso país marchava para a cadeia como um fuso.


Vasco Pulido Valente, Público de hoje

Saturday, October 06, 2007

15 anos a eleger líderes (Eduardo Cintra Torres)

O incidente Santana Lopes/SICN e a eleição de Luís Filipe Menezes para presidente do PSD coincidiram com o 15º aniversário da TV privada. Três temas num só. Começando em Menezes: entre ele e Marques Mendes houve um desequilíbrio televisivo fatal para o segundo. Nos noticiários, cujo discurso é controlado pela selecção jornalística (e não só), Mendes aparecia regularmente, mas Menezes também, ao seguir a estratégia de Lopes: criar «TV opportunities» para tomar posições contrárias a Mendes ou para o criticar. Assim, com a colaboração televisiva, Menezes há muito que se inventou como alternativa a Mendes.

Fora dos noticiários, Mendes esteve em alguns programas de entrevista, de grande tensão e muito controlados pelos entrevistadores, não proporcionando empatia do espectador com os políticos. E Menezes? Estava desde 2004 no Frente-a-Frente da SICN, ambiente mais relaxado e possibilitando essa empatia. Mendes não tinha, e Menezes tinha, um canal de grande liberdade discursiva e de comunicação permanente com os militantes e espectadores. Em resumo: depois de Santana Lopes, Paulo Portas e José Sócrates, Menezes é o quarto líder partidário eleito por causa da televisão.

E o incidente Lopes-SICN? (Ponto prévio: a SICN cortou a entrevista com incompetência, pois para o evitar bastaria o recurso habitual da divisão do ecrã: manteria Lopes falando enquanto mostrava na outra metade a chegada de Mourinho, assim dando os dois eventos em simultâneo.) O caso revelou momentânea presença de espírito de Lopes. A revolta contra critérios editoriais da SICN foi o seu único acto assinalável na campanha do PSD e em nada se relacionou com ela.

O caso permite debater critérios editoriais, o directo e como interromper uma notícia para dar outra. Em teoria é questionável que a chegada dum treinador de futebol interrompa uma entrevista política. Mas não há teoria sem verificação no concreto: o treinador em causa é um dos melhores e mais mediáticos do mundo, regressando à «pátria» depois da mais espectacular saída de um clube de que há memória; existia a hipótese (remota) de ele dizer algo mais importante que Lopes. Este tem há décadas uma presença pertinaz nos ecrãs como comentador de futebol, comentador político (SIC e RTP) e concorrente dum concurso na SIC; inventou-se e reinventou-se para estar sempre na berra mediática, e os media deram-lhe tudo; a sua carreira política fez-se de aparecer na babugem do dia, de dicas erráticas, do diz que diz e não disse, do eu sou assim e eu e eu e eu. Faz o que for preciso para aparecer: se para aparecer for preciso desaparecer do estúdio da SICN, ele levanta-se e sai. De facto: desde Junho que Lopes não aparecia na lista dos 10 protagonistas das notícias televisivas e, por ter desaparecido da entrevista, entrou de rompante para 5º lugar, protagonizando 16 notícias em quatro dias do período de 24 a 30.09.

Invenção da TV, em boa parte da SIC e SICN, Lopes agiu como a criatura em revolta contra o criador. Mas revejam-se as imagens: depois de terminada a ligação ao aeroporto, não só se manteve em estúdio dois minutos (!) como agradeceu repetidamente, como que deixando a porta aberta a muitos e muitos convites futuros para lá voltar.

Mais notável é que tantos milhares, incluindo leitores do PÚBLICO, se congratulassem com o gesto. A asfixia futebolística nos noticiários não gera protestos iguais; não há protestos em massa como este contra 15 minutos de Madail ou Scolari abrindo três noticiários; dois dias depois do episódio Lopes, não se ouviram protestos contra a RTPN por emitir um programa de futebol repetido enquanto a SICN dava em directo a vitória e o discurso de Menezes; também não há protestos quando, nas noites eleitorais, se interrompe um político para dar o ecrã a outro.

Porquê a comoção neste caso? Porque se deu mais importância ao futebol do que à política; porque Lopes fez o mesmo que a SICN, esta usou o directo para o interromper, ele usou o directo para a interromper; porque Lopes pareceu recusar o palco mediático; porque muita gente já não aceita a arrogância da TV em geral de dona de palco, microfone e imagem, ela, sim, a verdadeira treinadora ou seleccionadora de quem é «alguém» no país, incluindo os chefes partidários como o próprio Lopes, Sócrates, Portas ou Menezes.

O caso simbolizou a percepção da TV como arrogante mas em decadência: anos atrás, Lopes não se teria levantado por precisar da TV como fulcro da ascensão política; hoje, com a internet e os muitos canais de TV alternativos, já pode ser «corajoso» pois o seu gesto chega a toda a gente por outros meios: em quatro dias, no you-tube as imagens foram vistas mais de 336.000 vezes.

Acaba um ciclo, ao fim de 15 anos? Hora de balanço: a mudança política e social do país por causa da TV em 15 anos foi bem maior e mais significativa do que a mudança dos conteúdos televisivos. A programação actual, estava, em boa parte, pressuposta nas grelhas da RTP, quase 100 por cento comerciais quando começaram SIC e TVI: já lá estavam as novelas, sitcoms, futebol, concursos, publicidade em intervalos e programas, converseta. Hoje, a RTP permanece a empresa de TV comercial de Estado em concorrência com as TVs comerciais privadas.

As alterações na programação deveram-se à concorrência. O português passou a dominar as emissões, mas o medo de inovar nos conceitos de programas generalizou os formatos estrangeiros em versão lusa; a comunicação tornou-se quase só feminina e, nos últimos anos, a sensibilidade gay entrou em força na TV generalista; grelhas, programas e até rubricas são ditados só pela audimetria; programas com menos audiência, «populares» ou «elitistas», acabam ou empurram-se para horários invisíveis. Tudo isso estava em potência na RTP de 1992; ela lá chegaria sem TV privada.

Ainda por causa da concorrência, atendeu-se mais às escolhas dos espectadores; criaram-se novas elites secundárias, como a dos parasitas do ecrã que vivem de e por aparecerem, mas a abertura de noticiários, concursos e talk-shows a novos protagonistas de fora das elites tradicionais foi bem menor do que aparenta, como prova Felisbela Lopes em A TV das Elites (Campo das Letras, 2007).

A mudança essencial trazida pela TV privada foi a da vida política: a acção política resulta do que a televisão mostra; a acção política faz-se para a televisão mostrar; a crescente dissolução dos partidos deve-se à quase inutilidade das estruturas quando a comunicação se não processa por elas mas pelos media de massas; a importância crescente do protagonista partidário a tal se deve, pois é ele que aparece; os cidadãos participam mais em acções cívicas fora dos partidos porque a TV as mostra e obtêm resultados (estrada, policiamento, fecho de escola, etc.).

A TV não agiu só na vida política mas no próprio sistema político: a abertura das autárquicas às listas independentes resulta da personalização da política e da caducidade das estruturas partidárias enquanto forma única de comunicação entre políticos profissionais, militantes e cidadãos; a eleição directa dos líderes é obra da televisão e faz-se na televisão. Sem a abertura da TV a novos canais nunca Sócrates, Lopes, Portas e Menezes teriam chegado tão facilmente às chefias dos partidos.


Eduardo Cintra Torres (Público de hoje)

Tuesday, October 02, 2007

Chorai, elites (Rui Tavares)

Em geral, as elites portuguesas não se distinguem por nada que tenham feito. Não têm o hábito de se elevar e, em consequência, resta-lhes empurrar o povo para baixo quando ele se chega muito perto. Vejamos, a título de exemplo, as célebres elites do PSD. Joaquim Ferreira do Amaral é elite do PSD. Antigo ministro das Obras Públicas, candidato a presidente da Câmara de Lisboa, candidato à Presidência da República. Foi ele que negociou com a Lusoponte um ruinoso acordo para as travessias do Tejo que teve de ser defendido, nos anos finais do cavaquismo, à força de cargas policiais. Hoje Ferreira do Amaral é o presidente da Lusoponte.
Rui Rio é elite do PSD. O corajoso Rui Rio, o implacável Rui Rio, desejava chegar a líder do PSD. Sabia que teria o partido na mão, se avançasse. Mas decidiu reservar-se para uma ocasião mais propícia e em que desse menos trabalho chegar a primeiro-ministro. Azar para ele. Durão Barroso é elite do PSD. Enquanto líder da oposição não tinha disponibilidade para saber se uma empresa como a Somague pagava dívidas de milhares de contos ao seu partido. Como primeiro-ministro, pediu sacrifícios aos portugueses e deixou o país nas mãos de Pedro Santana Lopes.
Existe a tentação de comentar a relevância da vitória de Luís Filipe Menezes. Mas qual? A relevância ainda não está lá. Há quem diga que Menezes não chega às eleições, há quem diga que ele não as ganha e há quem diga que ainda bem. Para já o que há a comentar não é a relevância da sua vitória mas a relevância da derrota dos seus adversários. Uma implica a outra, mas não são a mesma coisa.
Diz-se que as elites do PSD perderam por falta de comparência ou por acharem que tinham o partido na mão. Ambas as explicações significam isto: as elites do PSD, no fundo, não são tão elites quanto isso. Na tradição nacional, sempre esperaram que o seu lugar lhes fosse guardado e cedido: no conselho de administração como no conselho de ministros. Nos intervalos do poder, escolhiam um caseiro para tomar conta do partido.
Da mesma forma, estes legítimos representantes da respeitabilidade cavaquista continuam a achar que o PSD tem de ter lugar cativo na sociedade portuguesa, apenas porque sim. Sempre desprezaram a ideologia a favor de um suposto monopólio do "saber governar". Fizeram o elogio dos self-made men para depois os acusar de populismo. Fugiram das causas sociais e avisaram o seu povo para se manter afastado do "politicamente correcto". Repetiram durante anos que a iniciativa pública é incompetente e a iniciativa privada virtuosa. Lembraram que se fizermos tudo para beneficiar os investidores e os empresários, o dinamismo do mercado se encarregará de todos. Riram das graçolas de Alberto João Jardim e apresentaram-no como bom exemplo. Aliaram-se a Paulo Portas para governar o país.
Chegaram a eleger Santana Lopes, não em directas, mas num Conselho Nacional. E agora choram: mas este foi o partido que eles fizeram. Historiador

Rui Tavares, Público de hoje

Sunday, September 23, 2007

Sonhos (Paulo Moura)

Acordei tarde, deixei passar a hora do pequeno-almoço. Esfomeado, saí do hotel, mergulhei na massa de calor e multidão. Seria fácil comprar alguma coisa para comer, entre os milhares de vendedores que apregoam nas ruas de Bombaim, pensei. E lá estava um. Tinha, atrelada à bicicleta, uma carreta onde fritava uns pastéis redondos, recheados com vários molhos. Como uma fila de clientes de olhar ávido esperasse a sua vez, tive a certeza de que aqueles sonhos salgados e luzidios seriam deliciosos. Imaginei-me a saboreá-los, enquanto vagueava pelo trepidante meio-dia de uma das maiores e mais fascinantes cidades do mundo e isso deu-me ainda mais gula por aqueles bolinhos estaladiços.
Chegou a minha vez. O homem fez algumas perguntas que não entendi, mas respondi a tudo que sim. Pus-me a observar aquela maravilha da culinária de rua. E então começou o horror.
O cozinheiro começou a tirar, de um saco de plástico, pedaços de massa com que fazia bolinhas, com as palmas das mãos muito sujas. A massa era amarela no início, mas quando caía no óleo nauseabundo já ia castanha. Uma vez frito, o sonho era escorrido numa folha de jornal. O homem fazia-lhe então um buraco, com a comprida e imunda unha do polegar, e introduzia os molhos.
Eu fiquei à beira do vómito. Paguei, sorri e, segurando no pacote gorduroso com as pontas dos dedos, corri dali para fora, em direcção ao caixote do lixo mais próximo.
Mas não havia nenhum. Procurei algum recanto, algum beco sem ninguém, onde pudesse deitar fora aquela mixórdia repugnante. Nada. Em Bombaim, não há um centímetro quadrado que esteja vazio. A cidade tem quase 20 milhões de habitantes, metade dos quais vive na rua, em extrema pobreza. Por mais voltas que se dê, não é possível estar sozinho, nem deitar comida fora em frente de pessoas que passam fome.
É claro que poderia dar os meus sonhos a alguém, mas com que desculpa?
Durante horas, percorri as ruas de Bombaim, com os sonhos na mão. Tentei pousá-los disfarçadamente, mas havia sempre alguém a olhar. Pensei fingir que os deixava cair, mas decerto alguém correria atrás de mim para mos entregar. Passou-me pela cabeça voltar ao hotel, mas que pensaria a empregada de quarto quando lá encontrasse comida estragada?
Continuei a correr a cidade, desesperado. Havia esquecido completamente a fome e tudo o que tinha para fazer. Como desembaraçar-me daqueles sonhos era a minha obsessão. Fazia por passar despercebido, enchia-me de alheamento, à espera de um minuto de privacidade, para poder cometer o meu pequeno crime, o meu pequeno gesto de insolência necessária.
Uma menina de uns 12 anos aproximou-se. Deve ter pressentido a minha vulnerabilidade e disse, com uma voz lasciva: "Senhor, precisa de alguma coisa?" E percorreu o próprio corpo com a mão de unhas pintadas. "Precisa?"
Voltei-lhe as costas e desatei a correr. Fugi daquela rua, daquele bairro, mas cada vez havia mais gente à minha volta, e acabei por deter-me, extenuado, no meio de uma praça. Sentei-me no chão. Olhei o embrulho, já amarrotado pelo desespero. Abri-o. Lá estavam os sonhos. Peguei num e meti-o na boca. Tinha um sabor esquisito, mas não desagradável. Comi outro. E não me levantei enquanto não engoli, lentamente, um a um, todos os sonhos que levava na mão.

Paulo Moura no Público de hoje

Thursday, September 13, 2007

Too Old To Rock 'N' Roll: Too Young To Die

The old Rocker wore his hair too long,
wore his trouser cuffs too tight.
Unfashionable to the end - drank his ale too light.
Death's head belt buckle - yesterday's dreams
the transport caf' prophet of doom.
Ringing no change in his double-sewn seams
in his post-war-babe gloom.

Now he's too old to Rock'n'Roll but he's too young to die.

He once owned a Harley Davidson and a Triumph Bonneville.
Counted his friends in burned-out spark plugs
and prays that he always will.
But he's the last of the blue blood greaser boys
all of his mates are doing time:
married with three kids up by the ring road
sold their souls straight down the line.
And some of them own little sports cars
and meet at the tennis club do's.
For drinks on a Sunday - work on Monday.
They've thrown away their blue suede shoes.

Now they're too old to Rock'n'Roll and they're too young to die.

So the old Rocker gets out his bike
to make a ton before he takes his leave.
Up on the A1 by Scotch Corner
just like it used to be.
And as he flies tears in his eyes
his wind-whipped words echo the final take
and he hits the trunk road doing around 120
with no room left to brake.

And he was too old to Rock'n'Roll but he was too young to die.
No, you're never too old to Rock'n'Roll if you're too young to die.

Jethro Tull

Monday, September 03, 2007

Em defesa da discussão dos transgénicos

É curiosa a crispação de algumas entidades relativamente à acção desencadeada no Algarve contra o milho transgénico. O que leva essas pessoas a preocuparem-se exclusivamente com uma das facetas da mesma - a do atentado à propriedade privada?
A quantidade de tempo dedicado ao facto pela SIC, as resmas de texto elaboradas por Pacheco Pereira, as declarações ministeriais e até os recados presidenciais não condizem com aquilo que eu, cidadão comum, entendo da questão. Não está, para mim, em causa a questão do direito à propriedade privada: também sou proprietário e, mais do que isso, sou um cidadão que faz questão de respeitar a legalidade democrática.
Mas quanto ao respeito da propriedade, penso que todos acreditamos que as autoridades competentes aí estão para desencadear as acções adequadas. Além de que o proprietário - lesado - é certamente capaz, por si só, de apresentar as devidas queixas. Sei que a questão da propriedade da terra é das mais sensíveis da sociedade portuguesa, mas não é isso que desejo abordar agora. Só o refiro para deixar claro que a minha posição não é tão ingénua como pode parecer.
O essencial, porém, é aquilo que motivou a acção de protesto: o recurso aos organismos geneticamente modificados (OGM), no caso o milho transgénico.
Não tenho qualquer razão para duvidar da legalidade da plantação, nem sou polícia. Nem tenho que questionar o direito do agricultor proprietário da plantação a fazer essa escolha: tomou a opção dentro do quadro que a legalidade lhe oferecia, de acordo com os seus critérios de gestão.
O que me preocupa, isso sim, é o recurso aos OGM, mesmo que ele seja legal. Ou melhor: precisamente porque é legal.
A questão dos OGM tem passado um tanto em claro na opinião pública portuguesa. E devemos perguntar-nos porque é que ela tem preocupado os povos e as elites de tantos países. Serão todos diletantes, esses que pelo mundo fora se têm preocupado com isso? Ou somos nós ignorantes ao ponto de não nos preocuparmos? Se - como os arautos da cruzada antiacção não se cansam de sublinhar - não há unanimidade científica sobre os efeitos dos transgénicos, isso legitima que se avance, designadamente na concepção legislativa, sem discutir o assunto na sociedade? A apregoada capacidade decisória do Governo é motivo para escamotear os assuntos mais sensíveis da discussão pública?
Haverá mesmo algum tema em relação ao qual as comunidades científicas sejam unânimes? E, mesmo que houvesse, será que os cidadãos comuns, exteriores às comunidades científicas, não têm uma palavra a dizer? Quem elege os decisores? Quem paga os impostos?
Então, onde está a oportunidade para os cidadãos discutirem este problema? Agora que ele está legislado, parece que tudo o que se disser ou fizer contra o avanço dos OGM será contra a lei! Nestas observações não se pode, evidentemente, ver qualquer apologia do desrespeito da propriedade privada nem das leis do país. Mas não é sabido que as leis são fruto dum ambiente e de um processo social? São as leis imutáveis? Quantas vezes o legislador se encosta à falta de conhecimento público para impor soluções que doutro modo não passariam? Não é esse, mesmo, um dos critérios para aferir a distância a que o poder (em qualquer parte) se encontra da sociedade? Podemos servir-nos do álibi de que a "Europa" decidiu que não há inconveniente na utilização dos OGM dentro de determinadas condições, para justificar o teor da própria legislação nacional? Se assim fosse, porque se estaria a discutir a "Constituição Europeia", preparada nas costas dos cidadãos europeus? Se assim fosse, porque se discutiriam as causas do afastamento dos cidadãos relativamente aos produtores das medidas políticas (legislativas e outras)?
Aquilo que é legal não é indiscutível. Doutro modo as leis não evoluiriam.
Em Portugal assistimos, por exemplo, nas décadas de 80 e 90, a acções contra a eucaliptização indiscriminada, nem todas respeitadoras da legalidade instituída. No entanto, foi graças a tais acções (algumas também atentatórias da propriedade privada), que a eucaliptização selvagem foi sendo travada, dando origem a legislação mais atenta ao bem público. Mas nem nessa altura se viu a berraria a que temos assistido a propósito desta acção relativa ao milho transgénico!
Depois de o movimento social tornar os cidadãos mais conscientes da problemática dos OGM e de os cientistas terem reforçado a prudência com que declaram as "verdades científicas", poderão os ministros dum Governo democrático ser tão categóricos a garantir a inoquidade desses OGM? E será legítimo que se atenham à mera questão do respeito da legalidade? Ou será que deveriam vir ao encontro do pulsar da sociedade e entrar no debate (que eles próprios deviam promover ou, no mínimo, aceitar democraticamente)?
É tempo de debater o problema que era a própria razão de ser da acção criticada: porque são perigosos os OGM? Porque devemos todos envolver-nos nesse esclarecimento? Qual a necessidade de fazer prevalecer o princípio da precaução?
Depois de se dar a poluição genética das culturas tradicionais... será tarde: Inês é morta! E o ensurdecedor silêncio oficial não ajuda - antes contraria - uma tomada de consciência esclarecida por parte dos cidadãos - e, também, dos próprios decisores, mesmo que sejam ministros. Em nome do desenvolvimento da cidadania, gaste-se pelo menos tanto tempo quanto se tem gasto em torno deste caso a discutir os OGM: pelo meu lado, agradecerei, e creio que os nossos filhos também.
Se não, quem se ri são as multinacionais - essas, sim, sem rosto! - que vendem os OGM mais os pesticidas necessários para acompanhar as respectivas culturas, tudo à custa não apenas do bolso dos compradores, mas, pior, da saúde pública e do ambiente que é de todos e não pode ser substituído por outra coisa qualquer.
Preocupemo-nos menos com quem paga as despesas dos activistas (lembram-se quando a PIDE invocava que os democratas recebiam dinheiro da Rússia?) e mais com a razão que lhes possa assistir na defesa dum mundo melhor.

Victor Louro - Engenheiro silvicultor. Antigo deputado à AR - Jornal Público de hoje

Wednesday, July 25, 2007

Wake Me Up When September Ends

Summer has come and passed
The innocent can never last
Wake me up when September ends

Like my father's come to pass
Seven years has gone so fast
Wake me up when September ends

Here comes the rain again
Falling from the stars

Drenched in my pain again
Becoming who we are

As my memory rests
But never forgets what I lost

Wake me up when Septmber ends

Summer has come and passed
The innocent can never last
Wake me up when Septmber ends

Ring out the bells again
Like we did when spring began

Wake me up when septmber ends

Here comes the rain again
Falling from the stars

Drenched in my pain again
Becoming who we are

As my memory rests
But never forgets what I lost

Wake me up when septmber ends

Summer has come and passed
The innocent can never last
Wake me up when Septmber ends

Like my father's come to pass
Twenty years has gone so fast
Wake me up when September ends

Green Day

Friday, June 01, 2007

"Palavras soltas"

No exame de Português do 9.º ano, os critérios de avaliação permitem que um aluno possa ter dois pontos (em cinco) com "muitas insuficiências" de natureza "ortográfica, lexical, morfológica" e "sintáctica". Ou seja, em última análise, permite que um aluno entre no secundário sem saber escrever. Basta que responda com "palavras soltas", se der uma ideia que percebeu a pergunta e sugerir vagamente a resposta. Não se compreende como um professor consegue adivinhar o sentido de "palavras soltas", com uma ortografia errada, e ainda por cima comparar o mérito, relativo e absoluto, dessas trapalhadas "verbais". Mas, segundo a sra. ministra da Educação, "há uma técnica", certamente miraculosa, para avaliar "competências de leitura e de interpretação". E o primeiro-ministro com certeza acredita.
Toda a gente conhece as mil e uma razões por que as crianças não sabem escrever. Pior do que isso, excepto um ou outro e-mail ou SMS, as crianças não precisam de escrever. Se o Estado suprimisse a disciplina de Português (e já agora o Latim, o Grego, a História e a Filosofia), nem a sociedade, nem o PIB sofriam muito. Suponho mesmo que não sofriam nada. Para a espécie de homem, e de mulher, que por aí crescentemente circula, as "palavras soltas" chegam e sobram. Quem viveu na época em que se escrevia (cartas, por exemplo) aprendeu que escrever é um exercício de investigação e de lógica; um exercício que obriga a definir, ordenar e desenvolver o que se pensa. E também uma tentativa para comover, convencer, informar ou instruir o próximo. A espécie de comunicação pessoal e colectiva que hoje se usa dispensa esse esforço.
Os critérios de avaliação do exame do nosso 9.º ano não passam de um sintoma de uma realidade maior e mais triste: o lento "regresso" do Ocidente a uma nova espécie de barbárie. Nunca se gastou tanto dinheiro em "cultura" e nunca a cultura foi tão universalmente desprezada. A classe média, que desde o século XV foi a sua portadora (e criadora) por excelência, está reduzida a viajar com a penetração de um boi (rico) que olha para um palácio. A linguagem pública (religiosa, política, jornalística, musical, literária, cinematográfica, universitária) empobrece dia a dia. A conversa, como arte, morreu, porque as pessoas não têm que dizer e muito pouco interesse em ouvir. O Estado anda a educar as nossas queridas criancinhas para este mundo. Que outra coisa seria de esperar?

Vasco Pulido Valente, Público de 1 de Junho de 2007

Wednesday, May 30, 2007

Monangamba

Naquela roça grande não tem chuva
é o suor do meu rosto que rega as plantações;

Naquela roça grande tem café maduro
e aquele vermelho - cereja
são gotas do meu sangue feitas seiva.

O café vai ser torrado,
pisado, torturado,
vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Perguntem às aves que cantam
aos regatos de alegre serpentear
e ao vento forte do sertão:

Quem se levanta cedo?
Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
a tipóia ou o cacho de dendém?

Quem capina e em troca recebe desdém,
fuba podre, peixe podre,
panos ruins, cinquenta angolares,
"porrada se refilares"?

Quem?
Quem faz o milho crescer
e os laranjais florescer
Quem?

Quem dá dinheiro para o patrão comprar
máquinas, carros, senhoras
e cabeças de pretos para os motores?

Quem faz o branco prosperar,
ter barriga grande, ter dinheiro?
Quem?

E as aves que cantam,
os regatos de alegre serpentear
e o vento forte do sertão
responderão:
- "Monangambééé..."

Ah! Deixem-me ao menos subir às palmeiras,
deixem-me beber maruvo
e esquecer diluído nas minhas bebedeiras:
- "Monangambééé..."

António Jacinto - poeta angolano

Friday, May 25, 2007

Estupidamente solidário

A inteligência e a insolidariedade andam de mãos dadas, na maior parte dos casos

Lembro-me bem que a seguir ao 25 de Abril, quando havia problemas, ninguém conhecia muito bem ninguém. A regra seguida era, as mais das vezes, "não me comprometam, que eu mal conheço a criatura".

A minha família esteve envolvida politicamente no 25 de Abril (antes e depois). Como muitas outras, teve problemas especialmente ao opor-se de forma activa à tentativa de desvio antidemocrático (e muitas vezes o foram). Mas o meu Pai tinha uma teoria interessante: devemos, nos momentos difíceis, procurar aliados com fortes princípios, mas não demasiadamente inteligentes. Quem é muito inteligente consegue sempre imaginar uma boa razão para não ser amigo e faltar à solidariedade pessoal sem, ilusoriamente, ferir os princípios. Essa justificação é não só uma desculpa para si próprio, mas também para os outros. Note-se que, também, não tem que ser uma atitude consciente, mas uma reacção instintiva de se pôr de fora: "Eu não me meto nos problemas dos outros", "realmente o que lhe têm vindo a fazer é chato, mas ele perdeu a razão na forma como reagiu"...

Com menos dramatismo, esta regra mantém-se verdadeira no nosso dia-a-dia. Podemos confiar em pessoas com fortes princípios e QI mediano, embora, também, não muito baixo; caso contrário, nem percebe o que se está a passar. Evidentemente que me orgulho de conhecer excepções a esta regra, mas conheço mais exemplos da sua veracidade, infelizmente.

É claro que na amizade há sempre uma dose de loucura que não se compadece com calculismos. Apoiar um tipo que está na mó de baixo é sincero; apoiar um ganhador também pode ser sincero, mas fica sempre a dúvida tanto em nós mesmos como nos outros.

A consciência desta regra, quase-sempre-verdadeira, levou-me a gostar de estar, por princípio, com a minoria. Para apoiar a maioria, em qualquer circunstância, penso sempre duas vezes se não estou a seguir o caminho fácil. Não faz de mim um homem feliz, mas um homem em paz e que não se envergonha de se ver ao espelho. É também por isso que sou da Académica, quando podia ser do Benfica ou do Porto, que ganham tudo. E porquê? Porque sim. Por que é que se é amigo de um amigo? Porque sim, é tudo.

Além disso, as opções morais no quotidiano raramente são decisões simples. O Judas é historicamente o estereótipo do traidor, embora, para mim, a ideia de ele se vender por 30 dinheiros seja factualmente difícil de admitir, por ser simples de mais. Será que Cristo escolheu um tipo tão mal formado que, tendo-O conhecido, O foi vender na primeira oportunidade? De qualquer forma, sujeitos que sejam iguais a este Judas não se encontram assim tão facilmente. O mundo real é muito mais subtil. E nem sempre estamos atentos.

Talvez até a história de Judas fosse algo diferente, mas nunca saberemos. Ainda há pouco foi publicado um romance curioso (mas não dramaticamente interessante, saliente-se) - O Evangelho segundo Judas - que nos dá uma interpretação alternativa. Alguém inteligente e que "trai", porque deseja ajudá-Lo, é transformado em bode expiatório, sendo os outros os verdadeiros traidores e, em especial, Pedro, que O negou três vezes.

Outra face desta moeda é o "empurrar de responsabilidades". Lembro-me, a propósito, de uma pequena história (que pode ficar como curiosidade para a História da guerra em África). Uma noite, talvez em 1972, quando me ia deitar, o meu Pai pediu-me para ficar com ele, porque havia algo de importante que iria acontecer lá para as duas da manhã. O caso era simples: tinha havido uma ofensiva em Angola e as nossas tropas estavam com problemas graves de munições, morteiros, granadas... A Força Aérea tinha-o informado, como chefe de gabinete do chefe do Estado-Maior, de que havia um 707 pronto a partir às duas da manhã, mas em sobrecarga ("as luzes vermelhas a piscar").

Com uma equipagem totalmente voluntária, o avião, dados os ventos, tinha que levantar voo sobre Lisboa. O perigo era evidente e queriam autorização superior. "Então perguntaste ao "chefe"?", inquiri. "Não, mandei eu próprio avançar; ele não poderia dizer outra coisa e, assim, se houver problema, a culpa é minha, ele pode dizer que não foi consultado." Como todos sabemos, correu bem e às duas da manhã vimos, da janela da nossa casa em Alvalade, a voar baixinho, o 707 sem problemas. Mas esta ideia de responsabilidade pessoal e institucional ficou-me marcada. Para o homem-económico dos modelos académicos, era o calculismo a funcionar contra o próprio, era um absurdo. Para os modelos da psicologia, é um comportamento de cidadania organizacional.

Penso que, sem darmos por isso, Deus ou o destino nos coloca todos os dias situações em que temos de escolher entre ser responsáveis, solidários e amigos ou sabiamente fugir às nossas responsabilidades. Sermos solidários é sê-lo por razões pouco inteligentes, ou seja, sem termos nada a ganhar, a não ser o respeito por nós próprios. É assim a vida e cada um escolhe a sua.

Luís Campos e Cunha, Público de 25.05.2007

Sunday, May 13, 2007

O que faz a famosa auto-estima xis ...

Os jornalistas devem confirmar a veracidade da informação que divulgam. É uma forma de evitar enganar os outros.
O texto "A coragem de Pessoa", publicado (caderno P2, pág. 4) no passado dia 13 de Abril, não passou despercebido.

Escreve Laurinda Alves:

"Deixo aqui o texto inspirador de Fernando Pessoa que foi lido em voz alta neste fim de tarde inesquecível.

Posso ter defeitos, viver ansioso
e ficar irritado algumas vezes mas
não esqueço de que minha vida é a
maior empresa do mundo, e posso
evitar que ela vá à falência.
Ser feliz é reconhecer que vale
a pena viver apesar de todos os
desafios, incompreensões e períodos
de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos
problemas e se tornar um autor
da própria história. É atravessar
desertos fora de si, mas ser capaz de
encontrar um oásis no recôndito da
sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã
pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios
sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um "não".
É ter segurança para receber uma
crítica, mesmo que injusta.
Pedras no caminho?
Guardo todas, um dia vou construir
um castelo..."

Alguns leitores questionam a autoria do "texto inspirador".
"(...) Pretendo ser discreto e não quereria ofender a senhora jornalista, que transborda de boas intenções e a quem desejo (como à maior parte das pessoas...) que seja muito feliz assim - ainda que, em semelhantes circunstâncias, me ocorra, com insistência, um brevíssimo conto de Voltaire sobre espécies de felicidade... Mas tenho bastante dificuldade em imaginar que um tal acervo de banalidades, mesmo muito bem intencionadas e inspiradoras, alguma vez se tenha encontrado com a complexa intelectualidade de Pessoa, nem mesmo em momento de ternurenta elaboração de uma carta para a Ophélinha. Além de que, literariamente, o textinho é muito pobrezinho... e isso, nem nas cartas para a Ophélinha! Acresce ainda que é basto notória a genealogia brasileira do escrito, com formulações sintácticas que, se hoje desgraçadamente contaminam a escrita deste lado do Atlântico, no tempo de Pessoa não eram sequer usadas na outra margem do dito, ao menos nos meios literários...
Como é que ninguém se apercebe disto?!
Temo que, ao publicar o textinho, sem que ninguém notasse a incongruência, o PÚBLICO lhe dê uma legitimidade inesperada (ainda se acredita no que vem nos jornais de referência), uma caução cultural reforçada, que sustente a convicção (sempre bem intencionada, com boa onda e muito karma) dos que continuam a não entender que a Net é um recurso muito importante, mas também muito perigoso, pois muito do que por ela viaja não tem qualquer validação...
Será que vou deparar com uma rectificação numa das próximas edições do PÚBLICO?
É claro que, se algum especialista em Fernando Pessoa me disser de que arca ou baú surgiu esta prosa, prometo que irei de burel e baraço em romagem ao Altar da Ignorância. E aceitarei, finalmente, como provado que o poeta uma ou outra vez abusaria do álcool e... não resistiria, mesmo assim, a escrever...", escreve Paulo Rato, um leitor de Queluz.
O texto suscitou mais interrogações.
"É citado um poema pretensamente de Fernando Pessoa ("A coragem de Pessoa", sem referência bibliográfica), cuja autenticidade me deixa dúvidas.
Uma frase como: "agradecer a Deus a cada manhã" não me parece que tenha saído da caneta do Mestre. Mas admito estar totalmente enganada, pelo que muito grata ficaria se me fornecessem a referência específica: qual o heterónimo, qual a data, qual a "arca" donde extraíram o poema", escreve Fernanda Jesuíno.
A solicitação da leitora é legítima.
"Já não é a primeira vez que me cruzo com esse texto (na altura foi-me enviado por e-mail), e já nessa altura tive a nítida impressão de que não é coisa que Pessoa fosse escrever. Não é estilo (ou estilos) dele. Não é o tema dele. Penso aliás que não é nada dele e o facto de o ver hoje preto no branco no PÚBLICO numa coluna de alguém que respeito e que a priori até confio saiba mais de Fernando Pessoa que eu, não me fez mudar de ideia.
No entanto, não encontro informação na Net que me suporte. Até porque esse texto está reproduzido incontáveis vezes e sempre colado ao nome de Fernando Pessoa. Não tenho mais a quem recorrer, a não ser que escreva para a Casa Fernando Pessoa, coisa que já estive mais longe de fazer. A única coisa que encontrei foi na Wikipédia, mas isso vale o que vale. Fica aqui transcrito: "Pedras no caminho? Eu guardo todas. Um dia vou construir um castelo."
Sentença tipicamente atribuída a Fernando Pessoa na Internet, ainda que nunca tenha sido escrita por ele, e sim por Nemo Nox, bloguista brasileiro.
(http://pt.wikiquote.org/wiki/Fernando_Pessoa)
Confio no seu juízo para avaliar a pertinência do meu comentário", escreve Daniel Marinha (do blogue www.quotidianidades.blogspot.com).
O comentário é pertinente.
"Mundo Pessoa" (blogue institucional da Casa Fernando Pessoa) apresentou três dias depois o "post" "Agarra que é apócrifo!": "Leonor Areal, no (blogue) Doc Log chama a atenção para coisas que é importante ler esclarecidas." (http://www.mundopessoa.blogspot.com/)
Eis o comentário de Leonor Areal: "(...) Laurinda Alves, em dia de azar, publica um texto supostamente de Fernando Pessoa, apócrifo evidentemente. Está à vista de qualquer um que conheça a obra de Pessoa que aquele poema piroso nunca podia ser dele, e ainda por cima com pronome reflexo colocado à moda brasileira: "Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história". Um idiota qualquer o escreveu, (...)" ("Fernando Peçonha" in http://doc-log.blogspot.com/2007/04/fernando-peonha.html)
É muito provável que a prosa corresponda a dois textos de autores diferentes. O bloguista brasileiro Nox poderá ser um deles: "No início de 2003, chateado com os obstáculos que encontrava e tentando ser um pouco otimista, escrevi aqui estas três frases: "Pedras no caminho? Eu guardo todas. Um dia vou construir um castelo." Não pensei mais nisso até que recentemente comecei a receber e-mails pedindo que eu confirmasse ser o autor do trechinho. Aparentemente, o trio de frases tomou vida própria e se espalhou pela Internet lusófona com variações na pontuação e na atribuição da autoria. (...) Depois alguém resolveu pegar um poema (possivelmente de Augusto Cury, autor de Dez Leis para Ser Feliz), colar o tal trechinho no fim e distribuir tudo como se fosse obra do Fernando Pessoa. Não demorou muito para que as minhas três frases começassem a pipocar pela rede atribuídas ao poeta português (afinal, é sempre mais bacana citar um famoso escritor luso que um quase desconhecido blogueiro brasileiro). Cheguei eu mesmo a duvidar da minha autoria. Poderia ter cometido um plágio inconsciente, recolhendo da memória alguma coisa lida no passado e achando que se tratava de material original? Revirei os poemas pessoanos em busca de pedras e castelos mas não consegui encontrar qualquer coisa remotamente parecida ao trecho em questão. Vasculhei os heterônimos e tampouco achei o guardador de pedras. (...) Outra coisa engraçada é que nem me sinto orgulhoso de ter escrito isso, parece-me hoje até um pouco piegas, como aqueles cartazes motivacionais com fotos bonitas e frases otimistas." (in www.nemonox.com/ppp/archives/2006_03.html#008119)
O psiquiatra Augusto Cury (autor de O Mestre do Amor, A Ditadura da Beleza ou O Futuro da Humanidade) não confirma a autoria da outra parte.
O provedor contactou, portanto, a Casa Fernando Pessoa.
"O poema em questão não é de Fernando Pessoa, coisa que poderia ser garantida à primeira leitura (pelo tema, pela escrita, pela ortografia). No Brasil, tanto na Web como em papel impresso, circulam vários "poemas apócrifos" assinados por Fernando Pessoa; muitas vezes, os seus autores pretendem garantir algum reconhecimento anónimo através da utilização do nome do poeta - são, geralmente, textos de má qualidade e que, infelizmente, se multiplicam todos os dias. Qualquer "leitor mediano" da obra de Pessoa ou dos seus heterónimos se dá conta da mistificação e da falsificação. Fernando Pessoa não diz semelhantes patetices", esclareceu Francisco José Viegas, escritor e director da Casa Fernando Pessoa.
Pedi, por outro lado, um esclarecimento a Laurinda Alves: "Agradeço sinceramente o contributo dos leitores e dos especialistas para desfazer um equívoco que não era só meu e, por isso, podia ser perpetuado. Aqui ficam os textos e as cartas, escritos em vários tons, a desfazer todas as dúvidas. Verifico, com surpresa, que ainda há pessoas que vivem convencidas de que nunca se enganam nem se deixam enganar."
Laurinda Alves reconhece o erro.
O provedor considera que os jornalistas devem confirmar a veracidade da informação que divulgam. É uma forma de evitar enganar os outros. O resto é conversa...

Rui Araújo Provedor do leitor do Público em 13.05.2007

Thursday, May 03, 2007

Parabéns Agualusa

O escritor angolano acaba de receber o Independent Foreign Fiction Prize, no valor de 15 mil euros, com O Vendedor de Passados

Enquanto José Eduardo Agualusa lê a abertura de O Vendedor de Passados, numa National Portrait Gallery esgotada e silenciosa, tento imaginar que sou uma das outras pessoas que ali está. Uma dos outros, aqueles que não entendem o que Agualusa diz; os outros, aqueles que não falam português. Tento ficar calada por dentro, não responder ao que ouço. Deixar a língua escorregar dos sentidos, tornar-se esquiva. Perco-a em momentos sucessivos, caem substantivos: janela; verbos: vi. Até que não sei o que quer dizer O Vendedor de Passados; O Vendedor de Passados são Ss cujas pontas se atam umas às outras, são Rs bicho-de-conta, pronunciados para dentro de si mesmos.
Eu acho uma maravilha em Londres andar de autocarro e de metro a escutar línguas em ponto de rebuçado musical; mas ontem fiquei a pensar que talvez seja ave rara. Aos ingleses, não os vejo a virar estrategicamente os ouvidos seduzidos pelo que não podem entender. Aos britânicos não os vemos a correr para as livrarias por um escritor estrangeiro. Agualusa está nos três por cento de autores traduzidos para o mercado britânico. Depois, está nos três por cento dos três por cento dos três por cento seleccionados para o prémio patrocinado pelo The Independent que distingue literatura em tradução. E indo às milésimas das percentagens, Agualusa ganhou.
Agualusa termina. Não sei o que leu, mas digo-vos: é lindíssimo. Na National Portrait Gallery desfaz-se o silêncio da incompreensão, ou como é mais bonito observar, do mistério.
Agualusa sai do pódio com a sua língua misteriosa, e dá lugar a Daniel Hahn, o tradutor, que terá uma audiência, então, que ri e acena cabeças de acordo. Este prémio também é para ele (50/50), o desembaraçador de mistérios.
Foi uma noite feliz. Fiquei feliz pelo Agualusa, mas tenho que confessar, fiquei muito mais feliz por mim própria. Foi como se também eu tivesse ganho um prémio.
Acho que estou em Londres há tempo demais - tempo, pelo menos, suficiente para ter começado a duvidar da minha própria língua. O meu prémio, ontem, foi fazer as pazes com a minha língua. Aproveitem a oportunidade todos os que andam zangados com a língua portuguesa (que os há, há, neste mundo-anglo-saxónico-cêntrico). Não consigo pensar em ninguém melhor para curar-nos de complexos. Agualusa é "o" escritor de língua portuguesa, o escritor migrante do português - de Angola para Portugal, de Portugal para o Brasil, do Brasil de volta a Angola, usando todas as combinações triangulares possíveis.
Agualusa, sempre gentil e charmoso, independentemente da língua de conversação, não perdeu a compostura. Eu perdi. Vim para casa com um sorriso exclusivo, atirando-o no metro aos outros, os que não falam a minha língua. Os que não lêem a minha língua, nem em tradução. Não sabem o que perdem.

Susana Moreira Marques, Público de 03.05.2007

Easy to Be Hard

How can people be so heartless
How can people be so cruel
Easy to be hard
Easy to be cold

How can people have no feelings
How can they ignore their friends
Easy to be proud
Easy to say no

And especially people
Who care about strangers
Who care about evil
And social injustice
Do you only
Care about the bleeding crowd?
How about a needing friend?
I need a friend

How can people be so heartless
You know I'm hung up on you
Easy to give in
Easy to help out

And especially people
Who care about strangers
Who say they care about social injustice
Do you only
Care about the bleeding crowd
How about a needing friend?
I need a friend

How can people have no feelings
How can they ignore their friends
Easy to be hard
Easy to be cold
Easy to be proud
Easy to say no

HAIR

Thursday, April 12, 2007

E você, está apaixonado pela pessoa errada?

A dúvida é tão antiga quanto as relações amorosas: será que me apaixonei pela pessoa certa? E se for a errada, como saberei? A psicóloga Ana Cristina Oliveira levanta a ponta do véu: "A pessoa errada é aquela que provoca o desejo de lhe agradar de tal maneira que nos força a ser diferentes do que somos". Não é de todo uma pessoa má. "Pode ser a errada para uma, mas a certa para outra", explica a psicóloga que na semana que passou deu uma conferência sobre o tema "Porque é que nos apaixonamos pelas pessoas erradas?".

Desengane-se, pois, quem pensou que os amores errados eram os de Romeu e Julieta ou de Callas e Onassis.

Se se revê no discurso "já não sei quem sou, nos últimos 15 anos não comprei nada a meu gosto e fui passar férias a sítios que detesto", então as campainhas deveriam soar. Acontece a quem tem baixa auto-estima, isto é, não se aceita muito bem como é. E precisa de projectar uma imagem daquilo que não é.

Ele é extrovertido, ela é o oposto, mas não quer que se descubra. É aqui que começa a sabotagem e até mesmo a mentira. Eis um exemplo: pouco tempo depois de começar o enamoramento, numa sexta-feira à noite, ele decide ceder ao apelo de sair com os amigos. Sem saber, ela prepara um jantar especial em casa, à luz das velas. E quando se apercebe que vai passar o serão sozinha prefere não deixar transparecer a desilusão. Imagine-se o diálogo ao telemóvel: "Hoje vou sair com o meu grupo de amigos". Do outro lado da linha, silêncio. "O que é que tens? Nada". A frase, diz Ana Cristina Oliveira, bem poderia ser o título daquela conferência. Um dos elementos do casal sente-se compelido a mentir ou fica em silêncio quando sente o controlo absoluto do outro.

"Aqueles dois não podem sobreviver", sustenta Ana Cristina Oliveira. E se a escolha pela pessoa errada for sistemática? "Há uma patologia do padrão relacional", isto é, pessoas com baixa auto-estima apaixonam-se por seres semelhantes. Como ambos projectam uma imagem daquilo que não são "estão sempre a cobrar isso um ao outro porque nenhum aceita aquilo que é", explica a psicóloga.

Já o carácter complementar num casal parece funcionar: um é introvertido (mas socialmente apresenta-se como extrovertido) e o outro é extrovertido mas dá ares de tímido. Só que, segundo Ana Cristina Oliveira, esta relação saudável é muito mais dinâmica e dá muito mais trabalho: "Têm que investir continuamente e esforçarem-se por serem verdadeiros e autênticos".

A preguiça é, pois, um barómetro de uma relação saudável. Não é bom sinal que haja "um a servir e outro a trabalhar", "uma vítima e um carrasco". As relações erradas são também muito intensas e muito fechadas ao exterior. Parece assim claro o diagnóstico de uma relação saudável: "uma relação que parece simples, que não dá trabalho nenhum, é errada".

A pergunta "Porque é que nos apaixonamos pelas pessoas erradas?" aguçou a curiosidade dos media e atraiu 160 pessoas, a maioria mulheres, que encheram numa sexta-feira à noite a sala do Teatro A Barraca, em Lisboa. Muito mais gente disposta a pagar sete euros e meio do que para a palestra anterior sobre o "Sexo e a Comida", também promovida pela Associação Lavoisier para angariar fundos.

Será que as pessoas estão assim tão infelizes com a sua relação e vieram tentar perceber porquê? "Penso que não. Há uma ansiedade de compreensão sobre como é que são os mecanismos de comportamento de cada um", justifica a psicóloga e também presidente da associação. Só assim, diz, se explica a venda de livros como "Os homens são de Marte, as mulheres são de Vénus".

Por outro lado, as pessoas adoram saber uma coisa negativa sobre si próprias porque ficam com a sensação de que são melhores. "É como ver os acidentes de carro: as pessoas passam devagarinho para se sentirem aliviadas de não serem elas próprias". Por isso também é comum preencher os testes das revistas sobre personalidade ou relações amorosas.

Ao longo de quase três horas, a oradora tentou descodificar as relações "que continuam a ser um grande mistério". E, num tom descontraído que divertiu o público, desceu às raízes do "apaixonamento".

Os jogos dos afectos começam em bebé. A criação de vínculos com o pai, com a mãe e, mais tarde, a rivalidade desta com a educadora. Com a adolescência, chegam os surtos do "apaixonamento". E com a maior frequência de sempre. Depois, perdem-se com a idade.

Por volta dos 17 anos, o apaixonado é a antítese da família onde cresceu. É uma atitude contra os pais. É a altura em que o rico se apaixona pelo pobre ou vice-versa; o urbano-depressivo pela transmontana típica. No primeiro almoço de domingo com a família, os pais ficam em estado de choque. Mas se não mostrarem muita hostilidade, provavelmente, o filho parte para outra.

No segundo "apaixonamento", aparece o inverso, ou seja, o candidato muito parecido com os pais. Tão próximo ao ponto de arrumar a panela de pressão no mesmo lugar que a mãe. A família fica encantada, mas a pessoa é errada. Não está no "timing" certo.

Só a terceira seria a bem escolhida. A primeira semana de "apaixonamento" é uma espécie de estado gripal, há uma sintonia perfeita. Depois as diferenças começam a fazer sentir-se. Afinal, repete-se o padrão da pessoa errada. Como é se interrompe este ciclo? Acontece uma catástrofe. A pessoa recorre a uma terapeuta ou tem a sorte de lhe aparecer a pessoa certa, explica Ana Cristina Oliveira. Nesse caso, tem de haver um território comum e respeitar o território do outro. "Não é um casal em que os dois vão sempre ao supermercado, é um casal que discute - e acham que é sinal que a relação está má", esclarece.

Falar de "apaixonamento" numa sociedade bombardeada pelo sexo parece quase desfasado. Como diz Ana Cristina Oliveira, "o "apaixonamento" é a cereja em cima do bolo das relações". E apesar de ser "um estado de angústia insuportável" parece ser muito desejado. "É como a lua-de-mel: é muito desejada, mas quando chegamos lá parece que tudo corre mal. Nunca é tão boa a não ser nas fotografias".


Texto de Sofia Rodrigues, Páginas Xis, Pública, Público 8 de Abril de 2007

Friday, April 06, 2007

As boas e os maus

Tal como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres

Jorge de Sena, depois de zurzir longamente o romance Domingo à Tarde de Fernando Namora, rematava assim: "E concluamos com uma nota comprovativa da total isenção com que foi escrito este artigo: eu nunca li nenhum romance de Namora, e muito menos este de que me ocupei. De onde deve concluir-se que a diferença fundamental entre a literatura autêntica e a literatura de consumo está em que, para falarmos desta última, não é necessário lê-la."

O mesmo digo do programa A Bela e o Mestre no ar na TVI. Nunca o vi nem faço tenções de ver mas, como se trata de um programa de consumo, até de grande consumo, para falar dele nem preciso vê-lo. Contaram-me o pior e imagino até que possa ser pior do que me contaram.

O título remete para A Bela e o Monstro, um conto ancestral reescrito no século XVIII por Madame de Beaumont e que deu um bem conhecido filme. Mas as belas do programa pouco têm que ver com a menina do filme. Esta era até bastante inteligente, lia livros e, no castelo do monstro, ficou excitadíssima com a enorme biblioteca. E é a sensibilidade ligada à inteligência que a levou a amar o monstro, fazendo com que ele deixasse de o ser. Era bem diferente das raparigas estupidamente bonitas por fora e completamente ocas por dentro que imagino - repito que não vi - fazem as delícias dos voyeurs televisivos.

Já muita gente se insurgiu contra a imagem estereotipada e retrógrada da mulher que o programa transmite. A Bela e o Mestre é um verdadeiro regresso ao passado. No final do século XIX, Ramalho Ortigão, o macho lusitano que se bateu com Antero de Quental em duelo antes de se juntar aos "vencidos da vida", escrevia: "Pobres mulheres! Elas são-nos bem inferiores (...) pela anatomia dos ossos e dos músculos e pela constituição do cérebro. Elas têm a cabeça mais pequena, como as raças inferiores (...) não sabem compor óperas e nunca chegam a entender a matemática." Ramalho falava sem ponta de ironia: a mulher era considerada por ele e pelos contemporâneos um ser inferior. Sabemos hoje que estava redondamente enganado, e os seus descendentes intelectuais, que ainda não passaram do século XIX, estão tão enganados como ele. Ou melhor: estão ainda mais enganados, pois durante o tempo que passou ficou demonstrada a desrazão ramalheana. Quanto à ópera, não sei o suficiente, mas posso assegurar que alguns dos nossos melhores matemáticos são mulheres. Algumas bastante belas, se é que isso interessa.

Um mestre aparece identificado com um monstro na versão portuguesa deste telelixo. Como muitos e muito bem já defenderam as mulheres da acusação de ignorância, mas ainda ninguém defendeu os mestres, não da acusação de fealdade, mas da de maldade que está implícita no título português (um monstro é não só feio como mau!), venho eu defendê-los. Apesar de não ter o grau de mestre, tenho o de doutor, e sinto-me no mesmo saco. As belas são as boas e nós somos os maus. Mas que mal fizemos nós? E por que motivo o mestre ou, por maioria de razão, o doutor aparece associado ao terror e ao mal?

Esta injusta associação tem, de facto, uma longa história, na qual se incluem o Doutor Fausto, um homem de ciência que fez um pacto com o demónio, e o Frankenstein, um estudante de ciências que criou um monstro no laboratório. A propósito, foi uma rapariga inglesa de 19 anos, Mary Shelley, que escreveu, pouco antes de Ramalho nascer, Frankenstein, um clássico universal, ao passo que o escritor português, goste-se ou não dele, nunca escreveu uma obra que atravessasse fronteiras.

Mas muito tempo passou desde o Doutor Fausto e o Frankenstein. E, assim como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres!

Carlos Fiolhais, Público 30.03.2007

Wednesday, March 14, 2007

Lost in translation: Three literary mistakes in one


The book: The New Guide of the Conversation in Portuguese and English written by Pedro Carolino and José da Fonseca in 1855. Although, it's probably better known by its 1883 edition title, English As She Is Spoke.

Mistake #1: becomes side-splittingly clear the second you open the book. Let's just say the entire thing reads like a particularly bad cheating attempt by a junior high schooler using Babelfish. According to the text, some common phrases a Portuguese traveler might use in England include: "That are the dishes whose you must be and to abstain;" "These apricots and these peaches make me and to came water in the mouth;" and the always-familiar idiom, "The stone as roll heap up not foam." It's this sort of high-quality translating work that made the book the world's first ironic bestseller - even prompting Mark Twain to contribute a preface to a later edition.

Mistake #2: became the stuff of legend. For decades, most experts have believed that Carolino and da Fonseca agreed to write an English phrasebook, despite the fact that neither knew English. Nor did they have access to a Portuguese-English dictionary. Instead, they wrote English As She Is Spoke using first a Portuguese-French dictionary and then a French-English one.

Mistake #3: was only recently discovered. In 2002, a graduate student at UCLA unveiled a new theory that José da Fonseca had been unfairly maligned by history. Apparently a legit scholar, da Fonseca had published a number of respectable translations and language guides - including an 1836 Portuguese-French phrasebook that bears a striking resemblance to English As She Is Spoke. The difference? Da Fonseca's book actually makes sense. According to the new research, Pedro Carolino simply came along 19 years later, poorly translated da Fonseca's French into English, then slapped both their names on the finished product.


mental_floss, March-April 2007, mentalfloss.com

Sunday, February 11, 2007

Segunda oportunidade

Esta semana convidaram-me para falar aos alunos de uma escola secundária. O tema era a conquista de Lisboa aos mouros, em 1147, mas os jovens estudantes estavam mais interessados noutros assuntos: queriam histórias de reportagem de guerra.Havia turmas do 7º ano ao 12º e os professores tinham-nos industriado sobre as perguntas a fazer, que deveriam incidir nas matérias que estavam a ser leccionadas. Mas mal se aperceberam de que tinham à sua frente alguém que estivera no Iraque, no Afeganistão e noutras zonas de conflito, esqueçeram completamente o programa de História.
- Qual foi a situação mais perigosa em que já esteve? - perguntou um.
- Quando teve mais medo?
- Já esteve quase a morrer?
- Viu matar muita gente?
- Já teve de fugir?
- Havia sítios onde se esconder?
- Qual foi a coisa mais horrorosa que viu?
- Alguma vez pegou numa metralhadora? Qual é a sensação?
Era uma daquelas escolas situadas entre vários bairros considerados "problemáticos". Grande parte das turmas eram formadas por alunos com situações especiais, segundo um programa designado "Segunda Oportunidade". Os docentes explicaram-me que, na maior parte do tempo, a sua função é, mais do que ensinar os conteúdos das respectivas disciplinas, ensinar os jovens a comportar-se.
- Gosta da guerra? - perguntou de repente uma rapariga loura de uns 16 anos, num tom assumidamente desafiador.
Os professores apressaram-se a esclarecer que ela era russa e que tinha vivido situações de grande violência. Eu declarei que odiava todo o tipo de guerra e que até tinha sido objector de consciência, para não ter de cumprir o serviço militar. Mas a rapariga levantou-se, apontou-me um dedo e respondeu, quase aos gritos:
- Se não gostasse não ia para as guerras! - sentou-se e começou a pintar os lábios com baton.
Sentindo a provocação, expliquei o melhor que pude a diferença entre estar numa guerra por achar importante escrever sobre ela e estar numa guerra por puro prazer. Mas ela, ostensivamente, já não me ouvia. Pintava os lábios e falava com as amigas.
Um miúdo de uns 12 anos e cabelo em cima dos olhos levantou-se para me interromper:
- O Saddam e o Bin Laden gostam da guerra!
Eu ia aproveitar pedagogicamente a deixa para definir a guerra como uma actividade só apreciada por homens sem escrúpulos, mas o miúdo não me deu tempo. Acrescentou logo:
- É por isso que eu gosto deles! Eu também adoro a guerra. Pegar uma arma e desatar a disparar balásios. Bang! Bang! Bang!
Uma menina de origem indiana quis saber se eu alguma vez tinha sido acusado de plágio. Lá respondi que nunca ninguém me tinha acusado de plágio, mas o garoto fã de Bin Laden recusou-se a acreditar:
- Acho que você já foi acusado de plágio!
Um miúdo africano que os professores esclareceram ser oriundo de Cabinda pôs o dedo no ar para fazer uma pergunta sobre a guerra de Cabinda, mas desistiu.
- Não, não posso fazer esta pergunta! - disse ele, aflito.
- E o Sousa Tavares, fez plágio ou não? - insistiu o aprendiz de Saddam.
Não sei, mas acho que não, comecei eu.
- Fez plágio, sim senhor. Eu sei que fez! - respondeu o fedelho e abandonou a sala batendo com a porta.
"Ele faz isto para chamar a atenção", explicaram-me depois os professores, com uma expressão de inexplicável ternura. "Nem sequer é um miúdo violento".
A minha vénia humilde aos professores da Segunda Oportunidade.

Paulo Moura, jornalista - Público - 4 de Fevereiro de 2007

Sunday, January 21, 2007

Les vieux

Les vieux ne parlent plus ou alors seulement parfois du bout des yeux
Même riches ils sont pauvres, ils n'ont plus d'illusions et n'ont qu'un cœur pour deux
Chez eux ça sent le thym, le propre, la lavande et le verbe d'antan
Que l'on vive à Paris on vit tous en province quand on vit trop longtemps
Est-ce d'avoir trop ri que leur voix se lézarde quand ils parlent d'hier
Et d'avoir trop pleuré que des larmes encore leur perlent aux paupières
Et s'ils tremblent un peu est-ce de voir vieillir la pendule d'argent
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, qui dit : je vous attends

Les vieux ne rêvent plus, leurs livres s'ensommeillent, leurs pianos sont fermés
Le petit chat est mort, le muscat du dimanche ne les fait plus chanter
Les vieux ne bougent plus leurs gestes ont trop de rides leur monde est trop petit
Du lit à la fenêtre, puis du lit au fauteuil et puis du lit au lit
Et s'ils sortent encore bras dessus bras dessous tout habillés de raide
C'est pour suivre au soleil l'enterrement d'un plus vieux, l'enterrement d'une plus laide
Et le temps d'un sanglot, oublier toute une heure la pendule d'argent
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, et puis qui les attend

Les vieux ne meurent pas, ils s'endorment un jour et dorment trop longtemps
Ils se tiennent par la main, ils ont peur de se perdre et se perdent pourtant
Et l'autre reste là, le meilleur ou le pire, le doux ou le sévère
Cela n'importe pas, celui des deux qui reste se retrouve en enfer
Vous le verrez peut-être, vous la verrez parfois en pluie et en chagrin
Traverser le présent en s'excusant déjà de n'être pas plus loin
Et fuir devant vous une dernière fois la pendule d'argent
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, qui leur dit : je t'attends
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non et puis qui nous attend.


Jacques Brel, les vieux

Saturday, January 20, 2007

O referendo

Não gosto do referendo e sempre o achei perigoso e nocivo. Primeiro, porque diminuiu e desvaloriza a representação política. Segundo, porque inevitavelmente tende a deturpar o debate e a vontade do eleitorado. Nenhum problema complicado tem uma resposta de "sim" ou "não". E, como não tem, os dois lados de qualquer campanha, como, no caso, a campanha sobre o aborto, acabam por cair na "simplificação terrível" da demagogia. Basta abrir os jornais. José Pinto Ribeiro, por exemplo, disse isto: "Um ovo não tem os mesmos direitos de um frango." Fora o mau gosto, quem falou em frangos? Mas Pinto Ribeiro não foi o único. César das Neves, no seu estilo hiperbólico, avisou que "a vitória do "sim"" torna o aborto tão "normal" como comprar um "telemóvel". Uma ideia que não se distingue pela sua especial humanidade. Gentil Martins quer punir as mulheres que reincidirem em abortar. E até houve um bispo que resolveu comparar o aborto com o enforcamento de Saddam Hussein. Deus lhe perdoe.
Significativamente, os grandes militantes do "sim" e do "não" vêm quase todos da classe média. Sucede que, para a classe média, o aborto não é um problema. Conhecendo bem os meios de contracepção e a "pílula do dia seguinte", quase nenhuma mulher (ou casal) da classe média é apanhada (ou apanhado) na necessidade de escolher entre um filho e um aborto. E, se as coisas por negligência ou acidente chegarem ao pior, não recorrem com certeza ao "vão de escada". Não admira, por isso, que vejam no aborto primariamente uma questão moral, de justiça social ou dos direitos da mulher e não hesitem em entrar numa polémica de "intelectuais", abstracta e violenta e, ainda por cima, incompreensível para quem, de facto, aborta.
Mas, pior do que o resto, é que, a pretexto de permitir uma decisão directa do "povo", o referendo criou pouco a pouco um confronto azedo entre a Igreja e a esquerda. Ou, se quiserem, entre a esquerda (com o PS à frente) e os católicos. Não se percebe como, apesar da prudência do patriarca, a Igreja se deixou envolver numa causa puramente política, que não contribui para a reafirmação da sua doutrina (e pode, pelo contrário, mostrar o desinteresse do país por ela) e que, ganhe o "sim" ou ganhe o "não", nada, ou quase nada, mudará na prática. Como não se percebe que o PS, excepto por exorcismo, se meta numa querela que só serve para promover o Bloco. A Igreja julga que pode fechar a porta ao aborto e os políticos que se livraram de um grande sarilho. Erro deles. Com o "sim" ou o "não", o referendo é o princípio de uma longa guerra, não é o fim.

Vasco Pulido Valente, Público - 20 de Janeiro de 2007

Monday, January 15, 2007

Paixão

(...)
Já um pouco mais calma, Isabel esperou que eu continuasse e eu assim fiz, sabendo como as mulheres ficam contentes ao ouvir dissertar sobre o amor.
- Os moralistas tentam persuadir-nos de que os instinto sexual tem pouco a ver com o amor e tendem a falar dele como se fosse um epifenómeno.
- Que diabo vem a ser isso?
- Bem, há psicólogos que pensam que a consciência acompanha os processos mentais e é por eles determinada, mas sem ter ela própria uma influência directa sobre eles. É mais ou menos como o reflexo de uma árvore sobre a água, não poderia existir sem a árvore, mas em nada a afecta. Para mim, tudo isto não passa de um monte de palavreado para dizer que pode existir amor sem paixão. Quando as pessoas dizem que o amor pode perdurar depois de a paixão morrer, estão a falar de outra coisa, de afecto, afabilidade, comunhão de gostos e interesses, e hábito. Especialmente hábito. Duas pessoas podem continuar a ter relações sexuais por hábito exactamente pela mesma razão que sentem fome à hora a que costumam comer. Claro que pode haver desejo sem amor. Mas o desejo não é paixão. O desejo é a consequência natural do instinto sexual e não é mais importante que qualquer outra função do animal humano. É por isso que é uma patetice as mulheres fazerem um drama se os maridos têm uma aventura esporádica quando a ocasião e as circunstâncias são propícias.
- E isso só se aplica aos homens?
Sorri.
- Já que insiste, serei forçado a admitir que os direitos são iguais. A única ressalva possível é que, para o homem, uma ligação passageira desse género não tem qualquer valor sentimental, ao passo que para a mulher tem.
- Depende da mulher.
Mas eu não estava disposto a deixar-me interromper.
- A menos que o amor seja paixão, deixa de ser amor para ser outra coisa qualquer; e a paixão não aumenta com a sua satisfação, mas sim com as dificuldades. O que lhe parece que Keats queria dizer quando aconselhou o amante sobre a urna grega onde jazia a não se lamentar? «Para sempre amarás quem terá sempre encanto!» Porquê? Porque ela era inatingível e por mais que o amante a perseguisse como louco, ela continuaria a escapar-lhe, pois estavam ambos prisioneiros no mármore do que suspeito ter sido uma obra de arte sem valor. O seu amor por Larry e o dele por si era tão simples e natural como o amor de Paolo e Francesca ou Romeu e Julieta. Felizmente para si, não acabou mal. Você casou com um homem rico e o Larry correu mundo atrás do cântico das Sereias. A paixão nada teve a ver com isso.
- Com é que sabe?
- A paixão não mede consequências. Pascal disse que o coração tem razões que a razão desconhece. Se ele queria dizer o que eu penso, significa que, quando a paixão domina o coração, este inventa razões que parecem não só plausíveis, mas decisivas para provar que o amor justifica tudo, até a perdição. Convence-nos de que até a honra é bem sacrificada e a vergonha um preço módico a pagar. A paixão é destrutiva. Destruiu Marco António e Cleópatra, Tristão e Isolda, Parnell e Kitty O'Shea. E, se não destrói, mata. Pode mesmo acontecer que uma pessoa tenha de enfrentar a desolação de saber que desperdiçou os melhores anos da sua vida, que se desonrou, sofreu a dor atroz do ciúme, engoliu mortificações e amarguras, esgotou todas as suas reservas de ternura, esbanjou toda a sua riqueza espiritual com uma pobre coitada, uma idiota, uma cavilha onde pendurou os sonhos e que não valia nem uma pastilha elástica.
Antes de terminar o meu discurso sabia muito bem que Isabel não estava a prestar atenção, estava, isso sim, ocupada com os seus próprios pensamentos. Porém, o comentário que fez a seguir surpreendeu-me.
- Acha que o Larry é virgem?
- Minha querida, ele tem trinta e dois anos.
- Tenho a certeza que é.
- Como pode ter a certeza?
- É o tipo de coisa que uma mulher sabe instintivamente.
- Conheci um jovem que fez uma carreira muito próspera durante anos a convencer uma beldade atrás da outra de que nunca tinha tido uma mulher. Dizia que funcionava como magia.
- Não me interessa o que possa dizer. Continuo a acreditar na minha intuição.
(...)

William Somerset Maugham, O fio da navalha, Edições Asa, Trad. de Ana Maria Chaves

Friday, January 12, 2007

Livro único

É preciso muito cuidado com as pessoas que leram um livro. Que leram apenas um livro. Porque não é o mesmo que ouvir um disco ou ver um filme, com o devido respeito. Um livro é incomparavelmente mais rico e complexo. É avassalador. Quem está habituado já não nota. Mas um pobre indefeso que é atacado de repente por um livro pode não lhe sobreviver. "Foi um livro que mudou a minha vida", ouve-se muitas vezes dizer. E eu acredito. O potencial está lá, para o melhor ou para o pior. Geralmente para o pior.
Conheço um tipo que leu uma vez um livro sobre as lendas dos índios da Amazónia. Ficou fascinado. O protagonista era um tal Nomombziá. Pois mal teve o primeiro filho, o inopinado fanático de literatura decidiu baptizá-lo como Nomombziá. A mulher não queria mas, por amor, cedeu. Já o funcionário do Registo Civil se mostrou mais intransigente: a lei não permitia tal nome próprio. Furioso, o pai da criança descompôs toda a repartição. Insultou o país e o Estado, representante de interesses mesquinhos e rasteiros, incapaz de compreender realidades mais elevadas, gritou ele, consciente de ter encontrado a causa da sua vida.
Registou provisoriamente a criança como Noémio José, e lançou-se numa batalha jurídica que dura até hoje.
A intensidade em que um livro nos mergulha é desmesuradamente diferente de qualquer outra experiência que tenhamos tido e os efeitos são imprevisíveis. Um livro suga-nos para dentro dele e depois explode dentro da nossa cabeça. Para um cérebro impreparado, é fatal. É como um gás que preenche num ápice todo o espaço vazio. O vazio da caixa craniana.
Há homens capazes de trair, de mentir, de renunciar a tudo, por um livro. Homens capazes de matar, só porque, um dia, leram um livro.
Alguns viveram anos e anos de resistência heróica. Felizes, sem ler uma linha. Mas não os deixavam em paz.
Quando, em público, alguém lhes perguntava: "Então, o que gosta de ler?" Respondiam invariavelmente: "Não leio tanto como devia..." Já a perceber-se a culpa que lhes roía a consciência e a auto-estima.
Até que um dia, num momento em que todas as condições estavam reunidas, sucumbiram. Num momento privilegiado, que nunca mais se repetiria, talvez um momento especialmente difícil, ou de busca de sentido para a existência, ou simplesmente de insuportável tédio, entregaram-se a um esforço sobre-humano de concentração, de vontade, de coragem, de abnegação. Entregaram-se ao grande empreendimento das suas vidas: leram um livro.
No fim, é como se tivessem levado uma sova. Ficam extenuados, com um olhar um pouco excêntrico. Juram para nunca mais. Tiveram a sua conta.
Lá voltam à vida, mas nada será como dantes. O livro deu cabo deles. Fazem lembrar aqueles jovens dos anos 70 que uma vez tomaram um ácido e nunca mais regressaram à normalidade. Só que estes regressam. Ou pensam que regressam.
Muitas vezes, estas pessoas acham que, já que só lêem um livro, devem ler um bom livro - a Bíblia, o Corão, o Manifesto Comunista. Erro crasso. É o pior que poderiam fazer. Se só lêem um, que seja uma coisa fraca. Mas o ideal mesmo, se só tencionam ler um, é não lerem nenhum.

Paulo Moura, Público de 7 de Janeiro de 2007

Thursday, January 04, 2007

O Ministério pimba da Educação

A propósito do livro Desastre no Ensino da Matemática: Recuperar o Tempo Perdido, organizado por Nuno Crato, Edições Gradiva, 2006.

Os Encontros de Caparide foram uma louvável iniciativa do Ministério da Educação, que pretendia ouvir as sociedades científicas sobre o ensino de algumas disciplinas fundamentais (Português, Matemática, Filosofia) cujas deficiências a nível de currículos são gritantes. Foram tempos áureos, em que um ministro da Educação, David Justino, se preocupava com questões relacionadas com o ensino e não apenas com questões laborais e meramente organizacionais. O cerne da excelência do ensino é a solidez científica dos currículos e a formação científica dos professores, mas as discussões públicas nacionais sobre educação nunca abordam estes aspectos centrais. Até parece que tudo o resto é que é a finalidade do ensino, quando na verdade são apenas meios.

Dos Encontros de Caparide resultaram dois livros. O primeiro, dedicado à Filosofia (Para a Renovação do Ensino da Filosofia, Plátano), foi publicado no início deste ano. E este volume, dedicado à Matemática, surgiu agora. No primeiro caso, trata-se de discutir uma proposta concreta que visa melhorar a qualidade científica e didáctica dos programas de Filosofia do ensino secundário. No segundo, trata-se de discutir questões pedagógicas gerais que afectam não apenas a disciplina de Matemática, mas todas as outras.

As desastrosas doutrinas pedagógicas que imperam em Portugal, algo pós-modernaças e "construtivistas", são elitistas - apesar de fingirem o contrário - e têm por denominador comum um ódio visceral às Ciências, à Matemática, à História, à Gramática, à Literatura, à Filosofia; enfim, a tudo o que se pareça com verdadeiros conteúdos escolares. Em vez de conteúdos, fala-se de competências - como se pudesse haver competências sem conteúdos. E em vez de se distinguir cuidadosamente o que são verdadeiros conteúdos escolares do resto, procura-se transformar a escola numa espécie de entretenimento com ademanes de educação para a cidadania - tudo, menos ensinar seriamente Matemática ou Geografia ou Filosofia ou História ou Música. A origem destas ideias remonta a Rousseau e à fantasia do bom selvagem, e o que se visa é acabar com as Ciências, as Artes e as Letras, pois tudo isso corrompe a criança, que é presumivelmente mais feliz a ver televisão e a jogar à bola. Claro que tudo isto é fantasioso porque para andar a entreter os meninos com conversa fiada não é preciso escola: as crianças divertem-se muito mais fora da escola, e no mundo de hoje não têm sequer tempo para se aborrecer.

Fantasioso é também querer certificar manuais escolares quando os programas das disciplinas, que foram certamente certificados pelo próprio ministério, são o locus classicus do erro científico e do disparate pedagógico. Em muitos casos, para que um manual seja cientificamente bom e pedagogicamente adequado, é obrigado a não respeitar o programa. Isto porque os programas se degradaram de tal maneira ao longo dos anos que, hoje em dia, ao ler um programa curricular de Filosofia ou Português ou outra disciplina, uma pessoa pergunta-se onde está a Filosofia ou o Português. Os pedagogos ministeriais impuseram ao país a original perspectiva de que se pode ensinar Português sem Português, Filosofia sem Filosofia e Matemática sem Matemática. Ao mesmo tempo que os estudantes são massacrados com inúmeras disciplinas vácuas sem qualquer centralidade escolar, não têm uma educação básica em Música, nem em Literatura ou Filosofia ou Geografia. Se um estudante de 15 anos quer saber alguma coisa sobre estas coisas, tem de o fazer fora da escola. Mas se quiser brincar aos índios, pode fazê-lo nas chamadas "actividades educativas", em substituição das aulas de Matemática. É esta a educação pimba que temos.

Mas não é esta a educação que a sociedade, no seu todo, quer. Os pais, com maior ou menor formação escolar, queixam-se de que a escola não ensina. Os miúdos cantam, com razão, que "na escola nada se cria, nada se transforma, tudo se perde". Os professores andam há anos a denunciar este estado de coisas. Mas os pedagogos ministeriais vão passando de governo para governo, conseguindo ora mudar a Gramática toda, prejudicando gravemente a possibilidade da excelência do ensino do Português (se antes poucos professores sabiam e ensinavam Gramática, agora ainda menos - ou será que a ideia é mesmo essa?), ora suspender documentos que introduzem conteúdos científicos sérios num programa que carece deles (como foi o caso da badalada suspensão das Orientações de Leccionação do Programa de Filosofia). A ideia de trabalhar pelo bem do país, pela excelência do ensino, em defesa do interesse público, é alheia a estes originais pedagogos.

Numa cultura como a portuguesa, na qual nunca se valorizou realmente o conhecimento - afinal, no tempo da outra senhora, o conhecimento era um ornamento social para exibir em conversas amenas enquanto se tomava chá -, compete à escola entusiasmar os jovens e a sociedade, dando-lhes uma percepção clara do valor intrínseco do conhecimento. Mas quando é o próprio ministério da educação que não acredita no valor intrínseco do conhecimento, dificultando cada vez mais o estudo aos muitos professores sérios que temos por esse país fora, afogando-os em trabalho burocrático e em horas contabilizadas nas escolas só para marcar ponto, que se pode esperar do nosso futuro? Como poderemos recuperar o tempo perdido, tanto no que respeita ao ensino da Matemática como no que respeita às outras disciplinas? Seja qual for a estratégia, o primeiro axioma tem de ser este: o conhecimento tem valor intrínseco, em si e por si, e é do maior interesse público protegê-lo e transmiti-lo, e ensinar a produzi-lo - e só a escola pode fazer isso, ainda que infelizmente o tenha de fazer contra o Ministério pimba da Educação.

Desidério Murcho, Professor de Filosofia - Público de 4 de Janeiro de 2007