Sunday, September 23, 2007

Sonhos (Paulo Moura)

Acordei tarde, deixei passar a hora do pequeno-almoço. Esfomeado, saí do hotel, mergulhei na massa de calor e multidão. Seria fácil comprar alguma coisa para comer, entre os milhares de vendedores que apregoam nas ruas de Bombaim, pensei. E lá estava um. Tinha, atrelada à bicicleta, uma carreta onde fritava uns pastéis redondos, recheados com vários molhos. Como uma fila de clientes de olhar ávido esperasse a sua vez, tive a certeza de que aqueles sonhos salgados e luzidios seriam deliciosos. Imaginei-me a saboreá-los, enquanto vagueava pelo trepidante meio-dia de uma das maiores e mais fascinantes cidades do mundo e isso deu-me ainda mais gula por aqueles bolinhos estaladiços.
Chegou a minha vez. O homem fez algumas perguntas que não entendi, mas respondi a tudo que sim. Pus-me a observar aquela maravilha da culinária de rua. E então começou o horror.
O cozinheiro começou a tirar, de um saco de plástico, pedaços de massa com que fazia bolinhas, com as palmas das mãos muito sujas. A massa era amarela no início, mas quando caía no óleo nauseabundo já ia castanha. Uma vez frito, o sonho era escorrido numa folha de jornal. O homem fazia-lhe então um buraco, com a comprida e imunda unha do polegar, e introduzia os molhos.
Eu fiquei à beira do vómito. Paguei, sorri e, segurando no pacote gorduroso com as pontas dos dedos, corri dali para fora, em direcção ao caixote do lixo mais próximo.
Mas não havia nenhum. Procurei algum recanto, algum beco sem ninguém, onde pudesse deitar fora aquela mixórdia repugnante. Nada. Em Bombaim, não há um centímetro quadrado que esteja vazio. A cidade tem quase 20 milhões de habitantes, metade dos quais vive na rua, em extrema pobreza. Por mais voltas que se dê, não é possível estar sozinho, nem deitar comida fora em frente de pessoas que passam fome.
É claro que poderia dar os meus sonhos a alguém, mas com que desculpa?
Durante horas, percorri as ruas de Bombaim, com os sonhos na mão. Tentei pousá-los disfarçadamente, mas havia sempre alguém a olhar. Pensei fingir que os deixava cair, mas decerto alguém correria atrás de mim para mos entregar. Passou-me pela cabeça voltar ao hotel, mas que pensaria a empregada de quarto quando lá encontrasse comida estragada?
Continuei a correr a cidade, desesperado. Havia esquecido completamente a fome e tudo o que tinha para fazer. Como desembaraçar-me daqueles sonhos era a minha obsessão. Fazia por passar despercebido, enchia-me de alheamento, à espera de um minuto de privacidade, para poder cometer o meu pequeno crime, o meu pequeno gesto de insolência necessária.
Uma menina de uns 12 anos aproximou-se. Deve ter pressentido a minha vulnerabilidade e disse, com uma voz lasciva: "Senhor, precisa de alguma coisa?" E percorreu o próprio corpo com a mão de unhas pintadas. "Precisa?"
Voltei-lhe as costas e desatei a correr. Fugi daquela rua, daquele bairro, mas cada vez havia mais gente à minha volta, e acabei por deter-me, extenuado, no meio de uma praça. Sentei-me no chão. Olhei o embrulho, já amarrotado pelo desespero. Abri-o. Lá estavam os sonhos. Peguei num e meti-o na boca. Tinha um sabor esquisito, mas não desagradável. Comi outro. E não me levantei enquanto não engoli, lentamente, um a um, todos os sonhos que levava na mão.

Paulo Moura no Público de hoje

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