Sunday, January 18, 2009

Os desatracados (Miguel Esteves Cardoso)

Se os portugueses vêem cada vez mais televisão, também há cada vez mais que não vêem. Nunca. Nem tão-pouco acompanham as coisas ditas de interesse público, sejam culturais, comerciais ou lá o que for. Desatracaram-se.

Os atracados andam a reboque da mesma caravana de agendas. Cada um tem uma opinião diferente. Mas todos vêem os mesmos programas e falam das mesmas pessoas e dos mesmos casos. Não é a discussão que é oprimente: é a agenda. A agenda é a lista das coisas escolhidas pelos empresários, políticos e editores para nós lermos; vermos; comprarmos; conhecermos; discutirmos.

É como o futebol. E basta não ligar ao futebol para ver o que se perde: nada. O pouco que importa acaba por chegar a toda a gente, já muito bem filtradinho, muito obrigado.

Graças à Internet, cada vez há mais desatracados. Lêem livros que mais ninguém está a ler; mergulham em mundos esquecidos; descobrem coisas tão novas que ainda nem coisas são; ouvem música fora de todas as modas; acompanham pessoas e problemas e pensamentos que se diria nada terem a ver com eles. Mas têm; acabam por ter. E isso é bom.

Desatracar não é rejeitar a realidade nem é ser hostil aos marcadores de agenda. É apenas pedir licença para não seguir o fio da realidade que está a ser distribuído a dado momento. É seguir outro fio, escolhido por cada um, sem grandes critérios ou seriedade até. E, quando se cruzam os dois, costuma ser interessantíssimo. E é giro.

Miguel Esteves Cardoso, Público de hoje