Thursday, December 27, 2007

"O maior drama da humanidade" - Rui Tavares - Público

Qual é o maior drama da humanidade? A guerra, a fome, as doenças, a miséria, a ignorância, o fanatismo, a violência, as catástrofes ambientais, a indiferença pelo sofrimento dos outros? Não, O maior drama da humanidade, segundo o cardeal-patriarca de Lisboa, é o ateísmo. O ateísmo é aquela opinião, hoje em dia trivial, de a que a existência de Deus é altamente improvável ou mesmo impossível. Mas não é bizarro que, nos dias de hoje, e com tanto por onde escolher, mesmo um cardeal designe tal ideia como "o maior drama da humanidade"? Aquele superlativo deixa implícito que qualquer outro drama, por grande que seja, é afinal menor do que o ateísmo, em toda e qualquer forma, desde todo o sempre. "Todas as formas de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade", disse José Policarpo na homilia de Natal.

O que explica que se consiga dizer isto? Uma característica curiosa da linguagem religiosa que verificaremos através de um exemplo prático. Em princípio, concordaremos todos que a guerra causa mais devastação do que o ateísmo. Mas se por "guerra" entendermos um momento ou circunstância em que os homens "negam ou se esquecem de Deus", logo a palavra "guerra" cabe dentro da definição de "ateísmo" do cardeal. Assim será possível dizer que o "ateísmo" é o maior drama da humanidade, de que a guerra passou simplesmente a ser uma manifestação. E o mais fascinante é que isto pode incluir até as guerras religiosas.

Nesta redefinição, o cardeal não quer dizer que ser ateu é pior do que matar alguém, mas que matar alguém é, por definição, uma forma de nos esquecermos de Deus e, por extensão, uma forma de ateísmo. Continua a ser absurdo, mas ao menos não é tão imoral.

Porquê, então, o ateísmo? Explicou o cardeal: "Os diversos ateísmos, nas mais variadas expressões, tiveram origem neste reduzir a esperança humana à dimensão da história", mas "nenhuma esperança deste mundo anula a esperança na vida eterna". Contra esta ideia de que a "esperança na vida eterna" é mais virtuosa do que a vida que temos, poderíamos lembrar que os bombistas suicidas matam pessoas às centenas com base numa "esperança na vida eterna". Mas não vale a pena. Isso seria apenas reeditar o debate inicial (o cardeal poderia dizer que os fundamentalistas "se afastaram de Deus" e o terrorismo religioso seria redefinido como uma espécie de ateísmo inconsciente).

Alguém lembrará que José Policarpo falava apenas para os fiéis, a quem estas palavras despertam outros sentidos. Pode ser. Mas esse é um dos problemas de falar para dentro e, em particular, da "viragem europeia" que Bento XVI impôs no Vaticano. Para poder combater a irreligiosidade na Europa, a prioridade passou a ser a doutrina, em detrimento dos problemas que realmente causam sofrimento à humanidade em todos os continentes. A estratégia é errada e, se os europeus virem a Igreja mais preocupada com jogos de linguagem do que com o sofrimento real, acabará por agravar ambos os problemas. Mas ao menos explica porque vê o cardeal como "maior drama da humanidade" aquilo que, afinal, é mais um drama da Igreja europeia.


Rui Tavares, Público de hoje