Thursday, July 27, 2006

O Náufrago

Foi um suicídio longamente premeditado, pensei, e não um acto espontâneo de desespero.

O Glenn Gould, o nosso amigo e o mais importante virtuoso do piano do século, também só fez 51 anos, pensava eu ao entrar na estalagem. Só que esse não se matou como o Wertheimer mas morreu, como se costuma dizer, de morte natural. Quatro meses e meio em Nova Iorque e sempre, sempre as Variações de Goldberg e A Arte da Fuga, quatro meses e meio de «Klavierexerzitien»* como o Glenn Gould dizia repetidamente e sempre só em alemão, pensava eu.
Há vinte e oito anos exactos havíamos morado em Leopoldskron e estudado com o Horowitz, e (no caso do Wertheimer e no meu, não no de Glenn Gould naturalmente) com o Horowitz tínhamos aprendido mais durante um Verão completo, Verão em que chovera continuamente, do que durante os oito anos anteriores do Mozarteum e da Academia de Viena. O Horowitz tinha reduzido a zero todos os nosso professores. Mas esses horríveis professores foram necessários para nós (...)

*Exercícios de piano (Nota da tradutora).


Thomas Bernhard, O Náufrago (Relógio d'Água - pág. 7 - Tradução de Leopoldina Almeida)

Monday, July 10, 2006

Quadro Abstracto

[...]

- Eu não compreendo as mulheres. Quanto mais as conheço, menos as compreendo. Falam muito, com muitos pormenores, não se calam, são umas perfeitas gralhas. É muito cansativo. A Lena, a minha segunda mulher, era ao contrário. Deprimia, estava sempre de trombas. Primeiro era da gravidez, depois era dos gémeos que não a deixavam dormir, se dormia de mais era porque ficava com dores de cabeça, se dormia de menos andava aos berros pela casa, e nunca sabia nada, eu perguntava-lhe o que é que ela achava disto ou daquilo e ela respondia "não sei". Sempre. Respondia a tudo "não sei". Esta agora que se chama Érnia, a minha actual mulher, então sabe tudo, tem opiniões sobre tudo, anda sempre toda contente, é insuportável.

[...]

Luísa Costa Gomes - Quadro Abstracto in Ler nº 51 (pág. 52) ou Império do Amor - contos - ed. Tinta Permanente (pág. 89)

Friday, July 07, 2006

Sete anos de pastor

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

Luís Vaz de Camões

Saturday, July 01, 2006

A tradução

Ao folhear com entusiasmo e ingenuidade a versão inglesa de certo filósofo chinês, dei com esta memorável passagem:

A um condenado à morte não lhe importa bordejar um precipício, porque renunciou à vida.

Neste ponto, o tradutor colocou um asterisco e advertiu-me que a sua interpretação era preferível à de outro sinólogo rival que traduzia desta maneira:

Os utilizadores destroem as obras de arte, para não terem de julgar as suas belezas e os seus defeitos.

Então, como Paolo e Francesca, deixei de ler. Um misterioso cepticismo tinha-se apoderado da minha alma.

J. L. Borges

Pablo de Santis, A tradução (Asa, 2000 - pag.7)