Sunday, February 11, 2007

Segunda oportunidade

Esta semana convidaram-me para falar aos alunos de uma escola secundária. O tema era a conquista de Lisboa aos mouros, em 1147, mas os jovens estudantes estavam mais interessados noutros assuntos: queriam histórias de reportagem de guerra.Havia turmas do 7º ano ao 12º e os professores tinham-nos industriado sobre as perguntas a fazer, que deveriam incidir nas matérias que estavam a ser leccionadas. Mas mal se aperceberam de que tinham à sua frente alguém que estivera no Iraque, no Afeganistão e noutras zonas de conflito, esqueçeram completamente o programa de História.
- Qual foi a situação mais perigosa em que já esteve? - perguntou um.
- Quando teve mais medo?
- Já esteve quase a morrer?
- Viu matar muita gente?
- Já teve de fugir?
- Havia sítios onde se esconder?
- Qual foi a coisa mais horrorosa que viu?
- Alguma vez pegou numa metralhadora? Qual é a sensação?
Era uma daquelas escolas situadas entre vários bairros considerados "problemáticos". Grande parte das turmas eram formadas por alunos com situações especiais, segundo um programa designado "Segunda Oportunidade". Os docentes explicaram-me que, na maior parte do tempo, a sua função é, mais do que ensinar os conteúdos das respectivas disciplinas, ensinar os jovens a comportar-se.
- Gosta da guerra? - perguntou de repente uma rapariga loura de uns 16 anos, num tom assumidamente desafiador.
Os professores apressaram-se a esclarecer que ela era russa e que tinha vivido situações de grande violência. Eu declarei que odiava todo o tipo de guerra e que até tinha sido objector de consciência, para não ter de cumprir o serviço militar. Mas a rapariga levantou-se, apontou-me um dedo e respondeu, quase aos gritos:
- Se não gostasse não ia para as guerras! - sentou-se e começou a pintar os lábios com baton.
Sentindo a provocação, expliquei o melhor que pude a diferença entre estar numa guerra por achar importante escrever sobre ela e estar numa guerra por puro prazer. Mas ela, ostensivamente, já não me ouvia. Pintava os lábios e falava com as amigas.
Um miúdo de uns 12 anos e cabelo em cima dos olhos levantou-se para me interromper:
- O Saddam e o Bin Laden gostam da guerra!
Eu ia aproveitar pedagogicamente a deixa para definir a guerra como uma actividade só apreciada por homens sem escrúpulos, mas o miúdo não me deu tempo. Acrescentou logo:
- É por isso que eu gosto deles! Eu também adoro a guerra. Pegar uma arma e desatar a disparar balásios. Bang! Bang! Bang!
Uma menina de origem indiana quis saber se eu alguma vez tinha sido acusado de plágio. Lá respondi que nunca ninguém me tinha acusado de plágio, mas o garoto fã de Bin Laden recusou-se a acreditar:
- Acho que você já foi acusado de plágio!
Um miúdo africano que os professores esclareceram ser oriundo de Cabinda pôs o dedo no ar para fazer uma pergunta sobre a guerra de Cabinda, mas desistiu.
- Não, não posso fazer esta pergunta! - disse ele, aflito.
- E o Sousa Tavares, fez plágio ou não? - insistiu o aprendiz de Saddam.
Não sei, mas acho que não, comecei eu.
- Fez plágio, sim senhor. Eu sei que fez! - respondeu o fedelho e abandonou a sala batendo com a porta.
"Ele faz isto para chamar a atenção", explicaram-me depois os professores, com uma expressão de inexplicável ternura. "Nem sequer é um miúdo violento".
A minha vénia humilde aos professores da Segunda Oportunidade.

Paulo Moura, jornalista - Público - 4 de Fevereiro de 2007