Tuesday, October 24, 2006

Défice democrático

Na semana passada, o secretário de Estado adjunto e da Educação, Jorge Pedreira, declarou a disponibilidade do Ministério da Educação para continuar a discutir o Estatuto da Carreira Docente com os sindicatos e mesmo para fazer algumas cedências nessa matéria que considerava aceitáveis, desde que os professores pusessem fim ao "clima de conflitualidade" e às suas "acções de luta".

Também na semana passada, o presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, decidiu gerir o conflito com uma companhia de teatro que fez um sit-in no Rivoli, em defesa da manutenção da gestão pública daquele teatro, recusando-se a manter qualquer diálogo com os manifestantes, cortando-lhes a electricidade e a água, baixando a temperatura do teatro para os vencer pelo frio e fechando-lhes as portas de forma a impedir o seu contacto com o exterior. Os manifestantes acabariam por ser retirados de madrugada pela polícia (sem oferecer resistência) depois de mais de três dias de ocupação.

Ambos os episódios são exemplos de como os políticos portugueses continuam a conviver mal com o confronto democrático e a contestação e de como o seu sentimento de autoridade é tão frágil que receiam pô-lo em causa, caso enveredem por uma simples discussão com os seus críticos. Se no caso do Rivoli se podia invocar o (débil) argumento da legalidade (ainda que os sit-ins, manifestações pacíficas, tenham uma honrosa genealogia que vai de Gandhi ao movimento dos direitos cívicos nos EUA), no caso das manifestações e protestos dos professores nem esse existia - o que não impediu o secretário de Estado de tentar a sua jogada autocrática e censória.

Um amigo dizia-me há dias que em Portugal não é possível ter uma boa discussão - nem sequer entre amigos. As pessoas fogem do confronto, sentem-se mal perante as diferenças de opinião e levam as opiniões tão a peito que sentem as diferenças como afrontas que ferem os sentimentos mais do que excitam a razão e que podem danificar amizades sem com isso aprofundar a verdade. Por isso, disfarçam as diferenças até cair no falso consenso. A maior parte das discussões acaba à nascença, com o "ah, mas eu não acho nada disso" que devia ser o sinal de partida para uma viva troca de argumentos.

Que os portugueses comuns fujam da discussão como o diabo da cruz, enfim. O que não se compreende nem se aceita é que os políticos apenas saibam gerir o confronto político recorrendo à chantagem ou à polícia.

Numa democracia liberal, o confronto das ideias e a negociação entre interesses legítimos é central ao processo de decisão. E pagamos aos políticos (entre outras coisas) para que eles participem nesse confronto de ideias, discutam, ouçam e depois decidam e executem. Esse confronto deveria, aliás, ser bem-vindo pelos políticos, já que ele estimula a participação democrática e contribui para o esclarecimento. Que esse confronto de ideias se realize num pano de fundo de conflitualidade social (com manifestações, greves e sit-ins) é um dos preços da democracia.

Se um político tiver a pele tão fina que não suporte participar nessa discussão, deve abster-se de se apresentar ao povo como governante ou autarca. E se considera que esse confronto de ideias deve ser reprimido pela força, não tem lugar num sistema democrático. Os políticos deveriam, pelo contrário, agradecer estas oportunidades, mediáticas por natureza, de explicar a bondade das suas políticas aos seus concidadãos. A utilização da força e da chantagem sugerem, com razão ou sem ela, que não possuem argumentos para apresentar ou que receiam o escrutínio do debate público.

A lamentável declaração de Jorge Pedreira é inaceitável em democracia e deveria ter sido objecto de um pedido de desculpas e de uma demissão. E o gesto de Rui Rio é mais um sinal da autoritária insegurança a que o autarca do Porto já nos habituou.

José Vítor Malheiros, Público de 24 de Outubro de 2006

Saturday, October 07, 2006

Que farei quando tudo arde?*

Geneviève Ferone: Há uma economia que precisa de se "descarbonizar"
Por Géraldine Correia

Géraldine Correia: Como entrou neste mundo socialmente responsável?

Geneviève Ferone: Depois da minha formação, queria trabalhar nas Nações Unidas, em questões sociais. Foi o que fiz e repeti na OCDE, sobretudo em questões ligadas à energia e ambiente. Estive também no HCR (Alto Comissariado dos Refugiados). Depois parti para os Estados Unidos, para um gabinete de advogados em Los Angeles, e abriu-se em seguida um gabinete estratégico em São Francisco. Era paga para ser os olhos e os ouvidos de clientes franceses das finanças. Reparei então que os investimentos "verdes" ou ambientais eram praticados de forma séria pelos fundos de pensões da Califórnia. Havia sempre um investimento dos fundos em negócios sociais e ambientais, com um desejo de retorno do investimento, uma rentabilidade a longo prazo.

Foi aí que teve contacto com o rating social?

Tive encontros com todos os fundos de pensões americanos. Os conselhos de administração reflectem as minorias, sindicatos, etc. Por isso, verifiquei que havia um duplo empenho: no desenvolvimento social e na vontade de proteger as reformas, ou seja, um imperativo de rendibilidade. Organizei então viagens de estudo para clientes europeus e percebi que havia um mercado potencial. O rating social era uma informação com peso para clientes que investem a longo prazo.

E como é que este rating pesa nos investimentos?

Uma empresa que não capta as condições ambientais, que tem crianças a trabalhar nas suas fábricas, entre outras situações, tem um perfil de risco importante. É um risco para a sua imagem, mesmo que não pese financeiramente. O rating dá uma nota às empresas e traduz a adequação da gestão face às questões do desenvolvimento sustentável. Lancei este conceito em 1996 e passei a vender informações a uma clientela europeia de fundos de investimento. Por acaso calhou bem na época, por uma questão de moda, e até fui criticada por julgarem que seria um desafio passageiro. Mas um grande banco, por exemplo, prefere oferecer ao cliente um portfolio diversificado, com empresas bem cotadas no desenvolvimento sustentável. Mesmo que os bancos adoptem esta prática apenas por questões cosméticas ou de marketing, acaba por valer a pena.

Qual a diferença em relação a agências de rating semelhantes nos Estados Unidos?

Nos Estados Unidos são aplicados critérios morais de exclusão. Não se investe em empresas no sector da pornografia, dos cigarros, álcool ou armas. Em França, a ARESE começou a dar notas a todos os sectores, porque podem vender-se produtos tóxicos de forma responsável e produtos para bebé com práticas duvidosas, e o objectivo é a melhoria das práticas em todos os sectores. Mais tarde, na CoreRatings, que fundei a seguir, continuei a minha batalha, apesar de sarcasmos de organizações não governamentais [ONG] sobre os meus métodos cooperativos. Mas não podemos mudar nada se não convencermos as pessoas do interesse de mudarem. Um dia os critérios sociais e ambientais estarão ao mesmo nível dos financeiros pela vontade de gerir melhor os riscos, atrair empregados melhores, melhorar a sua imagem, ou mesmo evitar processos.

Como reagem as empresas submetidas a análise?

Esse é o segundo impacto que se pode ter no mercado: as empresas analisadas perceberam que havia questões que assumiam uma importância estratégica. No que respeita ao ambiente, a energia está a tornar-se um bem raro. O protocolo de Quioto abriu um mercado financeiro verde, com as quotas permitidas de CO2, etc. O desenvolvimento sustentável começou a ter um impacto visível nas contas das empresas, quer directamente, através das quotas para os sectores do cimento, siderúrgicas, petrolíferas e de serviços específicos, quer indirectamente, como no sector automóvel. O sector dos transportes vai depender de inovações a muito curto prazo para respeitar uma fiscalidade verde que cobra as emissões de CO2 por automóvel. Nos biocombustíveis estamos no limiar de grandes mutações. Na aeronáutica será ainda mais marcante, porque nos aviões não existe ainda alternativa ao petróleo, e o impacto poluente no ambiente é dramático - a problemática é dupla. A indústria química está também em jogo - por isso se procura desenvolver a todo o custo a biotecnologia, processos mais naturais que recorram menos a substâncias tóxicas.

Há uma nova economia a nascer?

Há uma economia que precisa de se "descarbonizar". Toda a logística vai mudar. O petróleo é raro e finito, logo não é viável continuar a pensar que os transportes de mercadoria se façam por camião. A construção civil precisa de se adaptar com prédios novos bem isolados - é sabido que 25 a 30 por cento dos gases do efeito de estufa vêm da falta de isolamento de habitações. Tudo isto está documentado e sabemos exactamente o que está a agravar as coisas e o que é preciso mudar. Há uma necessidade premente de optimizar a energia.

As coisas estão a mudar nesse sentido?

O petróleo ainda não é suficientemente caro para que haja uma ruptura dos comportamentos e dos modelos de rentabilidade. Mas em França, por exemplo, sabemos que uma casa bem isolada e preparada com vários tipos de energia custa em média mais sete por cento. O importante para o consumidor é que em cinco anos pode poupar até 70 por cento nas suas facturas de energia. O momento é crucial, porque por um lado é preciso mudar depressa, mas por outro o parque imobiliário renova-se apenas ao ritmo de um por cento por ano, o que significa que há um mercado também para a reabilitação de habitações já existentes. O mercado quer uma rendibilidade imediata, mas se esperar demasiado também será tarde demais.

Quais são os outros factores graves a nível social?

Temos de pensar a longo prazo em formação para mudar hábitos, equidade e diversidade cultural. As empresas têm de lá chegar porque os riscos são dramáticos a médio prazo. Uma mão-de-obra inexistente, por exemplo, devido ao envelhecimento das populações, ou clandestina, provoca desequilíbrios na sociedade. Há questões que deixam de fazer sentido, como a deslocalização. A China ou Índia, mais cedo ou mais tarde, terão uma mão-de-obra mais cara e deixa de ser sustentável deslocalizar para depois reenviar uma produção por barcos que funcionam com um combustível finito, raro e caro... Em poucos anos, o repatriamento de mercadorias tornará a questão do outsourcing obsoleta.

Quais as consequências disso?

A questão da energia toca cada vez mais a carteira e a vida das pessoas. Coloca problemas no âmbito da biodiversidade, com espécies em desaparecimento, rupturas na cadeia alimentar do planeta e pandemias como a da gripe das aves. Há claramente uma mutação do modelo de sociedade. A situação demográfica exige um reequilíbrio das forças económicas e, ao mesmo tempo, a sociedade exige transparência. Com o escândalo que levou a promulgar a lei de Sarbanes-Oxley, as empresas foram forçadas a uma postura mais clara e a concertações com ONG por vezes muito duras, que perturbam e influenciam o jogo económico.

Como se situam as economias emergentes neste âmbito?

O Ocidente envia lixo para África, por exemplo - como é que as pessoas desse continente vão reagir, a prazo, por serem depósitos de resíduos e desperdícios de países ricos? Como é que isso influencia o jogo económico mundial? Os chineses e indianos vão desejar também ter o seu apartamento com ar condicionado, dois carros, etc. O Ocidente dá-lhes poder de compra, mas depois vai dizer-lhes que não podem poluir, que há efeitos adversos no clima e na energia... Fala-se em voltar a uma economia do carvão - é um desastre para o ambiente. Em suma, a equação da demografia em queda e crescimento de populações de economias emergentes e da subida do nível de vida e vontade de consumo é explosiva. Se associarmos a esta a equação da energia e do clima, é fácil perceber por que estamos num ponto de viragem. Sabemos que se houver um crescimento de dois por cento ao ano, em poucos anos não existirá nem mais uma gota de petróleo ou gás, ou seja, nada que possa alimentar o motor económico.

Como aborda estes temas com as empresas que analisa?

Estes números criam ansiedade e percebi, em conferências, que as pessoas ficavam rancorosas ou mesmo agressivas comigo ou, no limite, entravam em estratégias de negação. Não tenho uma postura ideológica, mas há factos, como a inércia do CO2, que devem ser considerados - uma tonelada de CO2 fica dez anos na atmosfera, os gases do ar condicionado ficam 50 mil anos na atmosfera terrestre. O que já está vai perdurar muito, por isso todos os gestos são importantes para travar futuras poluições - separar o lixo, valorizar os recursos. O desenvolvimento sustentável depende tanto dos comportamentos como de tecnologias milagrosas. É provável que nos tenhamos de habituar a viver com mais calor no Verão, mais frio no Inverno. Mas vá dizer isso a economias emergentes...

Quem está a dar cartas nesta área?

É curioso como as petrolíferas detêm todas as patentes de energia solar - este mercado está cativo. O nuclear será a ponte durante uns tempos, com os riscos que conhecemos e populações a recusar centrais... Vivemos numa bolha de champanhe, com um conforto gigantesco a um preço mínimo. Ainda estamos numa atitude de negação. Nesta fase de transição, vão surgir serviços em alta, como a gestão de facturas energéticas. Uma empresa especializada virá a nossa casa, colocará energia solar para a água, caldeira, biomassa para o aquecimento central, etc. Haverá uma gestão com manutenção e pagaremos uma renda por esse serviço. Quando comprarmos um carro, haverá uma manutenção: o fabricante retomará o carro quando for um resíduo, para reciclá-lo. O futuro está numa desmaterialização da economia. Estamos mal habituados, porque queremos tudo novo. Na construção, por exemplo, as empresas usam asfalto novo. Porquê? Porque não recuperar asfalto usado e reaplicá-lo?

E porque acha que isso acontece?

Há uma grande margem de manobra na construção. Na Eiffage, por exemplo, o rating é favorável por estar próxima do terreno, ter empregados accionistas, etc. Está constantemente a criar protótipos para encontrar soluções na construção civil. Nasceu assim uma proposta de edifício de energia positiva em Lyon, a nova sede da empresa, com células fotovoltaicas nas fachadas para aquecimento, climatização fraca, menos estacionamento para que as pessoas venham de transportes, etc. O edifício vai produzir mais energia do que aquela que consome. Fazem também estradas asfaltadas a baixa temperatura, com materiais reciclados, e conseguiram já fazer funcionar um lar da terceira idade com energias renováveis. Estão numa problemática de arquitectura bioclimática, mas no fundo querem garantir a sua sobrevivência.

O que deve ser considerado para mudar?

O importante é prever questões que vão tornar-se rapidamente maduras, no âmbito de quatro grandes questões. Existem as questões latentes, como a nanotecnologia, cujos efeitos não conhecemos ainda muito bem, e as questões emergentes - são as de que falam os jornais, como a biodiversidade, ou direitos humanos. Depois há as questões maduras, como as energias renováveis, a eco-construção, a diversidade cultural nas empresas, etc., problemas ditos inteligentes. Finalmente temos as questões institucionais, com a legislação, as quotas de CO2, tratamento de resíduos, igualdade salarial entre homens e mulheres, higiene e segurança, etc. O truque está em perceber o que vai passar de latente a emergente ou maduro, e tentar agir correctamente para que não seja necessário passar para a questão institucional. As empresas reúnem-se a todo o custo em lobbies, como o WBCSD - World Business Council for Sustainable Development, para tentar mostrar à sociedade que estão atentas e reconhecem que há problemas... Os processos avançam muito rapidamente. As empresas reagem de forma defensiva, limitam-se a gerir riscos ou navegam à vista, gerindo apenas as questões institucionais. Outras escolhem a inovação e ruptura estratégica - são as start ups que preparam um novo mundo.

DiaD de 6 de Outubro de 2006, Público

* Título roubado de António Lobo Antunes por sugestão da Elipse