É curiosa a crispação de algumas entidades relativamente à acção desencadeada no Algarve contra o milho transgénico. O que leva essas pessoas a preocuparem-se exclusivamente com uma das facetas da mesma - a do atentado à propriedade privada?
A quantidade de tempo dedicado ao facto pela SIC, as resmas de texto elaboradas por Pacheco Pereira, as declarações ministeriais e até os recados presidenciais não condizem com aquilo que eu, cidadão comum, entendo da questão. Não está, para mim, em causa a questão do direito à propriedade privada: também sou proprietário e, mais do que isso, sou um cidadão que faz questão de respeitar a legalidade democrática.
Mas quanto ao respeito da propriedade, penso que todos acreditamos que as autoridades competentes aí estão para desencadear as acções adequadas. Além de que o proprietário - lesado - é certamente capaz, por si só, de apresentar as devidas queixas. Sei que a questão da propriedade da terra é das mais sensíveis da sociedade portuguesa, mas não é isso que desejo abordar agora. Só o refiro para deixar claro que a minha posição não é tão ingénua como pode parecer.
O essencial, porém, é aquilo que motivou a acção de protesto: o recurso aos organismos geneticamente modificados (OGM), no caso o milho transgénico.
Não tenho qualquer razão para duvidar da legalidade da plantação, nem sou polícia. Nem tenho que questionar o direito do agricultor proprietário da plantação a fazer essa escolha: tomou a opção dentro do quadro que a legalidade lhe oferecia, de acordo com os seus critérios de gestão.
O que me preocupa, isso sim, é o recurso aos OGM, mesmo que ele seja legal. Ou melhor: precisamente porque é legal.
A questão dos OGM tem passado um tanto em claro na opinião pública portuguesa. E devemos perguntar-nos porque é que ela tem preocupado os povos e as elites de tantos países. Serão todos diletantes, esses que pelo mundo fora se têm preocupado com isso? Ou somos nós ignorantes ao ponto de não nos preocuparmos? Se - como os arautos da cruzada antiacção não se cansam de sublinhar - não há unanimidade científica sobre os efeitos dos transgénicos, isso legitima que se avance, designadamente na concepção legislativa, sem discutir o assunto na sociedade? A apregoada capacidade decisória do Governo é motivo para escamotear os assuntos mais sensíveis da discussão pública?
Haverá mesmo algum tema em relação ao qual as comunidades científicas sejam unânimes? E, mesmo que houvesse, será que os cidadãos comuns, exteriores às comunidades científicas, não têm uma palavra a dizer? Quem elege os decisores? Quem paga os impostos?
Então, onde está a oportunidade para os cidadãos discutirem este problema? Agora que ele está legislado, parece que tudo o que se disser ou fizer contra o avanço dos OGM será contra a lei! Nestas observações não se pode, evidentemente, ver qualquer apologia do desrespeito da propriedade privada nem das leis do país. Mas não é sabido que as leis são fruto dum ambiente e de um processo social? São as leis imutáveis? Quantas vezes o legislador se encosta à falta de conhecimento público para impor soluções que doutro modo não passariam? Não é esse, mesmo, um dos critérios para aferir a distância a que o poder (em qualquer parte) se encontra da sociedade? Podemos servir-nos do álibi de que a "Europa" decidiu que não há inconveniente na utilização dos OGM dentro de determinadas condições, para justificar o teor da própria legislação nacional? Se assim fosse, porque se estaria a discutir a "Constituição Europeia", preparada nas costas dos cidadãos europeus? Se assim fosse, porque se discutiriam as causas do afastamento dos cidadãos relativamente aos produtores das medidas políticas (legislativas e outras)?
Aquilo que é legal não é indiscutível. Doutro modo as leis não evoluiriam.
Em Portugal assistimos, por exemplo, nas décadas de 80 e 90, a acções contra a eucaliptização indiscriminada, nem todas respeitadoras da legalidade instituída. No entanto, foi graças a tais acções (algumas também atentatórias da propriedade privada), que a eucaliptização selvagem foi sendo travada, dando origem a legislação mais atenta ao bem público. Mas nem nessa altura se viu a berraria a que temos assistido a propósito desta acção relativa ao milho transgénico!
Depois de o movimento social tornar os cidadãos mais conscientes da problemática dos OGM e de os cientistas terem reforçado a prudência com que declaram as "verdades científicas", poderão os ministros dum Governo democrático ser tão categóricos a garantir a inoquidade desses OGM? E será legítimo que se atenham à mera questão do respeito da legalidade? Ou será que deveriam vir ao encontro do pulsar da sociedade e entrar no debate (que eles próprios deviam promover ou, no mínimo, aceitar democraticamente)?
É tempo de debater o problema que era a própria razão de ser da acção criticada: porque são perigosos os OGM? Porque devemos todos envolver-nos nesse esclarecimento? Qual a necessidade de fazer prevalecer o princípio da precaução?
Depois de se dar a poluição genética das culturas tradicionais... será tarde: Inês é morta! E o ensurdecedor silêncio oficial não ajuda - antes contraria - uma tomada de consciência esclarecida por parte dos cidadãos - e, também, dos próprios decisores, mesmo que sejam ministros. Em nome do desenvolvimento da cidadania, gaste-se pelo menos tanto tempo quanto se tem gasto em torno deste caso a discutir os OGM: pelo meu lado, agradecerei, e creio que os nossos filhos também.
Se não, quem se ri são as multinacionais - essas, sim, sem rosto! - que vendem os OGM mais os pesticidas necessários para acompanhar as respectivas culturas, tudo à custa não apenas do bolso dos compradores, mas, pior, da saúde pública e do ambiente que é de todos e não pode ser substituído por outra coisa qualquer.
Preocupemo-nos menos com quem paga as despesas dos activistas (lembram-se quando a PIDE invocava que os democratas recebiam dinheiro da Rússia?) e mais com a razão que lhes possa assistir na defesa dum mundo melhor.
Victor Louro - Engenheiro silvicultor. Antigo deputado à AR - Jornal Público de hoje
A quantidade de tempo dedicado ao facto pela SIC, as resmas de texto elaboradas por Pacheco Pereira, as declarações ministeriais e até os recados presidenciais não condizem com aquilo que eu, cidadão comum, entendo da questão. Não está, para mim, em causa a questão do direito à propriedade privada: também sou proprietário e, mais do que isso, sou um cidadão que faz questão de respeitar a legalidade democrática.
Mas quanto ao respeito da propriedade, penso que todos acreditamos que as autoridades competentes aí estão para desencadear as acções adequadas. Além de que o proprietário - lesado - é certamente capaz, por si só, de apresentar as devidas queixas. Sei que a questão da propriedade da terra é das mais sensíveis da sociedade portuguesa, mas não é isso que desejo abordar agora. Só o refiro para deixar claro que a minha posição não é tão ingénua como pode parecer.
O essencial, porém, é aquilo que motivou a acção de protesto: o recurso aos organismos geneticamente modificados (OGM), no caso o milho transgénico.
Não tenho qualquer razão para duvidar da legalidade da plantação, nem sou polícia. Nem tenho que questionar o direito do agricultor proprietário da plantação a fazer essa escolha: tomou a opção dentro do quadro que a legalidade lhe oferecia, de acordo com os seus critérios de gestão.
O que me preocupa, isso sim, é o recurso aos OGM, mesmo que ele seja legal. Ou melhor: precisamente porque é legal.
A questão dos OGM tem passado um tanto em claro na opinião pública portuguesa. E devemos perguntar-nos porque é que ela tem preocupado os povos e as elites de tantos países. Serão todos diletantes, esses que pelo mundo fora se têm preocupado com isso? Ou somos nós ignorantes ao ponto de não nos preocuparmos? Se - como os arautos da cruzada antiacção não se cansam de sublinhar - não há unanimidade científica sobre os efeitos dos transgénicos, isso legitima que se avance, designadamente na concepção legislativa, sem discutir o assunto na sociedade? A apregoada capacidade decisória do Governo é motivo para escamotear os assuntos mais sensíveis da discussão pública?
Haverá mesmo algum tema em relação ao qual as comunidades científicas sejam unânimes? E, mesmo que houvesse, será que os cidadãos comuns, exteriores às comunidades científicas, não têm uma palavra a dizer? Quem elege os decisores? Quem paga os impostos?
Então, onde está a oportunidade para os cidadãos discutirem este problema? Agora que ele está legislado, parece que tudo o que se disser ou fizer contra o avanço dos OGM será contra a lei! Nestas observações não se pode, evidentemente, ver qualquer apologia do desrespeito da propriedade privada nem das leis do país. Mas não é sabido que as leis são fruto dum ambiente e de um processo social? São as leis imutáveis? Quantas vezes o legislador se encosta à falta de conhecimento público para impor soluções que doutro modo não passariam? Não é esse, mesmo, um dos critérios para aferir a distância a que o poder (em qualquer parte) se encontra da sociedade? Podemos servir-nos do álibi de que a "Europa" decidiu que não há inconveniente na utilização dos OGM dentro de determinadas condições, para justificar o teor da própria legislação nacional? Se assim fosse, porque se estaria a discutir a "Constituição Europeia", preparada nas costas dos cidadãos europeus? Se assim fosse, porque se discutiriam as causas do afastamento dos cidadãos relativamente aos produtores das medidas políticas (legislativas e outras)?
Aquilo que é legal não é indiscutível. Doutro modo as leis não evoluiriam.
Em Portugal assistimos, por exemplo, nas décadas de 80 e 90, a acções contra a eucaliptização indiscriminada, nem todas respeitadoras da legalidade instituída. No entanto, foi graças a tais acções (algumas também atentatórias da propriedade privada), que a eucaliptização selvagem foi sendo travada, dando origem a legislação mais atenta ao bem público. Mas nem nessa altura se viu a berraria a que temos assistido a propósito desta acção relativa ao milho transgénico!
Depois de o movimento social tornar os cidadãos mais conscientes da problemática dos OGM e de os cientistas terem reforçado a prudência com que declaram as "verdades científicas", poderão os ministros dum Governo democrático ser tão categóricos a garantir a inoquidade desses OGM? E será legítimo que se atenham à mera questão do respeito da legalidade? Ou será que deveriam vir ao encontro do pulsar da sociedade e entrar no debate (que eles próprios deviam promover ou, no mínimo, aceitar democraticamente)?
É tempo de debater o problema que era a própria razão de ser da acção criticada: porque são perigosos os OGM? Porque devemos todos envolver-nos nesse esclarecimento? Qual a necessidade de fazer prevalecer o princípio da precaução?
Depois de se dar a poluição genética das culturas tradicionais... será tarde: Inês é morta! E o ensurdecedor silêncio oficial não ajuda - antes contraria - uma tomada de consciência esclarecida por parte dos cidadãos - e, também, dos próprios decisores, mesmo que sejam ministros. Em nome do desenvolvimento da cidadania, gaste-se pelo menos tanto tempo quanto se tem gasto em torno deste caso a discutir os OGM: pelo meu lado, agradecerei, e creio que os nossos filhos também.
Se não, quem se ri são as multinacionais - essas, sim, sem rosto! - que vendem os OGM mais os pesticidas necessários para acompanhar as respectivas culturas, tudo à custa não apenas do bolso dos compradores, mas, pior, da saúde pública e do ambiente que é de todos e não pode ser substituído por outra coisa qualquer.
Preocupemo-nos menos com quem paga as despesas dos activistas (lembram-se quando a PIDE invocava que os democratas recebiam dinheiro da Rússia?) e mais com a razão que lhes possa assistir na defesa dum mundo melhor.
Victor Louro - Engenheiro silvicultor. Antigo deputado à AR - Jornal Público de hoje
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