Tal como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres
Jorge de Sena, depois de zurzir longamente o romance Domingo à Tarde de Fernando Namora, rematava assim: "E concluamos com uma nota comprovativa da total isenção com que foi escrito este artigo: eu nunca li nenhum romance de Namora, e muito menos este de que me ocupei. De onde deve concluir-se que a diferença fundamental entre a literatura autêntica e a literatura de consumo está em que, para falarmos desta última, não é necessário lê-la."
O mesmo digo do programa A Bela e o Mestre no ar na TVI. Nunca o vi nem faço tenções de ver mas, como se trata de um programa de consumo, até de grande consumo, para falar dele nem preciso vê-lo. Contaram-me o pior e imagino até que possa ser pior do que me contaram.
O título remete para A Bela e o Monstro, um conto ancestral reescrito no século XVIII por Madame de Beaumont e que deu um bem conhecido filme. Mas as belas do programa pouco têm que ver com a menina do filme. Esta era até bastante inteligente, lia livros e, no castelo do monstro, ficou excitadíssima com a enorme biblioteca. E é a sensibilidade ligada à inteligência que a levou a amar o monstro, fazendo com que ele deixasse de o ser. Era bem diferente das raparigas estupidamente bonitas por fora e completamente ocas por dentro que imagino - repito que não vi - fazem as delícias dos voyeurs televisivos.
Já muita gente se insurgiu contra a imagem estereotipada e retrógrada da mulher que o programa transmite. A Bela e o Mestre é um verdadeiro regresso ao passado. No final do século XIX, Ramalho Ortigão, o macho lusitano que se bateu com Antero de Quental em duelo antes de se juntar aos "vencidos da vida", escrevia: "Pobres mulheres! Elas são-nos bem inferiores (...) pela anatomia dos ossos e dos músculos e pela constituição do cérebro. Elas têm a cabeça mais pequena, como as raças inferiores (...) não sabem compor óperas e nunca chegam a entender a matemática." Ramalho falava sem ponta de ironia: a mulher era considerada por ele e pelos contemporâneos um ser inferior. Sabemos hoje que estava redondamente enganado, e os seus descendentes intelectuais, que ainda não passaram do século XIX, estão tão enganados como ele. Ou melhor: estão ainda mais enganados, pois durante o tempo que passou ficou demonstrada a desrazão ramalheana. Quanto à ópera, não sei o suficiente, mas posso assegurar que alguns dos nossos melhores matemáticos são mulheres. Algumas bastante belas, se é que isso interessa.
Um mestre aparece identificado com um monstro na versão portuguesa deste telelixo. Como muitos e muito bem já defenderam as mulheres da acusação de ignorância, mas ainda ninguém defendeu os mestres, não da acusação de fealdade, mas da de maldade que está implícita no título português (um monstro é não só feio como mau!), venho eu defendê-los. Apesar de não ter o grau de mestre, tenho o de doutor, e sinto-me no mesmo saco. As belas são as boas e nós somos os maus. Mas que mal fizemos nós? E por que motivo o mestre ou, por maioria de razão, o doutor aparece associado ao terror e ao mal?
Esta injusta associação tem, de facto, uma longa história, na qual se incluem o Doutor Fausto, um homem de ciência que fez um pacto com o demónio, e o Frankenstein, um estudante de ciências que criou um monstro no laboratório. A propósito, foi uma rapariga inglesa de 19 anos, Mary Shelley, que escreveu, pouco antes de Ramalho nascer, Frankenstein, um clássico universal, ao passo que o escritor português, goste-se ou não dele, nunca escreveu uma obra que atravessasse fronteiras.
Mas muito tempo passou desde o Doutor Fausto e o Frankenstein. E, assim como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres!
Carlos Fiolhais, Público 30.03.2007
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