Não gosto do referendo e sempre o achei perigoso e nocivo. Primeiro, porque diminuiu e desvaloriza a representação política. Segundo, porque inevitavelmente tende a deturpar o debate e a vontade do eleitorado. Nenhum problema complicado tem uma resposta de "sim" ou "não". E, como não tem, os dois lados de qualquer campanha, como, no caso, a campanha sobre o aborto, acabam por cair na "simplificação terrível" da demagogia. Basta abrir os jornais. José Pinto Ribeiro, por exemplo, disse isto: "Um ovo não tem os mesmos direitos de um frango." Fora o mau gosto, quem falou em frangos? Mas Pinto Ribeiro não foi o único. César das Neves, no seu estilo hiperbólico, avisou que "a vitória do "sim"" torna o aborto tão "normal" como comprar um "telemóvel". Uma ideia que não se distingue pela sua especial humanidade. Gentil Martins quer punir as mulheres que reincidirem em abortar. E até houve um bispo que resolveu comparar o aborto com o enforcamento de Saddam Hussein. Deus lhe perdoe.
Significativamente, os grandes militantes do "sim" e do "não" vêm quase todos da classe média. Sucede que, para a classe média, o aborto não é um problema. Conhecendo bem os meios de contracepção e a "pílula do dia seguinte", quase nenhuma mulher (ou casal) da classe média é apanhada (ou apanhado) na necessidade de escolher entre um filho e um aborto. E, se as coisas por negligência ou acidente chegarem ao pior, não recorrem com certeza ao "vão de escada". Não admira, por isso, que vejam no aborto primariamente uma questão moral, de justiça social ou dos direitos da mulher e não hesitem em entrar numa polémica de "intelectuais", abstracta e violenta e, ainda por cima, incompreensível para quem, de facto, aborta.
Mas, pior do que o resto, é que, a pretexto de permitir uma decisão directa do "povo", o referendo criou pouco a pouco um confronto azedo entre a Igreja e a esquerda. Ou, se quiserem, entre a esquerda (com o PS à frente) e os católicos. Não se percebe como, apesar da prudência do patriarca, a Igreja se deixou envolver numa causa puramente política, que não contribui para a reafirmação da sua doutrina (e pode, pelo contrário, mostrar o desinteresse do país por ela) e que, ganhe o "sim" ou ganhe o "não", nada, ou quase nada, mudará na prática. Como não se percebe que o PS, excepto por exorcismo, se meta numa querela que só serve para promover o Bloco. A Igreja julga que pode fechar a porta ao aborto e os políticos que se livraram de um grande sarilho. Erro deles. Com o "sim" ou o "não", o referendo é o princípio de uma longa guerra, não é o fim.
Vasco Pulido Valente, Público - 20 de Janeiro de 2007
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