Monday, January 15, 2007

Paixão

(...)
Já um pouco mais calma, Isabel esperou que eu continuasse e eu assim fiz, sabendo como as mulheres ficam contentes ao ouvir dissertar sobre o amor.
- Os moralistas tentam persuadir-nos de que os instinto sexual tem pouco a ver com o amor e tendem a falar dele como se fosse um epifenómeno.
- Que diabo vem a ser isso?
- Bem, há psicólogos que pensam que a consciência acompanha os processos mentais e é por eles determinada, mas sem ter ela própria uma influência directa sobre eles. É mais ou menos como o reflexo de uma árvore sobre a água, não poderia existir sem a árvore, mas em nada a afecta. Para mim, tudo isto não passa de um monte de palavreado para dizer que pode existir amor sem paixão. Quando as pessoas dizem que o amor pode perdurar depois de a paixão morrer, estão a falar de outra coisa, de afecto, afabilidade, comunhão de gostos e interesses, e hábito. Especialmente hábito. Duas pessoas podem continuar a ter relações sexuais por hábito exactamente pela mesma razão que sentem fome à hora a que costumam comer. Claro que pode haver desejo sem amor. Mas o desejo não é paixão. O desejo é a consequência natural do instinto sexual e não é mais importante que qualquer outra função do animal humano. É por isso que é uma patetice as mulheres fazerem um drama se os maridos têm uma aventura esporádica quando a ocasião e as circunstâncias são propícias.
- E isso só se aplica aos homens?
Sorri.
- Já que insiste, serei forçado a admitir que os direitos são iguais. A única ressalva possível é que, para o homem, uma ligação passageira desse género não tem qualquer valor sentimental, ao passo que para a mulher tem.
- Depende da mulher.
Mas eu não estava disposto a deixar-me interromper.
- A menos que o amor seja paixão, deixa de ser amor para ser outra coisa qualquer; e a paixão não aumenta com a sua satisfação, mas sim com as dificuldades. O que lhe parece que Keats queria dizer quando aconselhou o amante sobre a urna grega onde jazia a não se lamentar? «Para sempre amarás quem terá sempre encanto!» Porquê? Porque ela era inatingível e por mais que o amante a perseguisse como louco, ela continuaria a escapar-lhe, pois estavam ambos prisioneiros no mármore do que suspeito ter sido uma obra de arte sem valor. O seu amor por Larry e o dele por si era tão simples e natural como o amor de Paolo e Francesca ou Romeu e Julieta. Felizmente para si, não acabou mal. Você casou com um homem rico e o Larry correu mundo atrás do cântico das Sereias. A paixão nada teve a ver com isso.
- Com é que sabe?
- A paixão não mede consequências. Pascal disse que o coração tem razões que a razão desconhece. Se ele queria dizer o que eu penso, significa que, quando a paixão domina o coração, este inventa razões que parecem não só plausíveis, mas decisivas para provar que o amor justifica tudo, até a perdição. Convence-nos de que até a honra é bem sacrificada e a vergonha um preço módico a pagar. A paixão é destrutiva. Destruiu Marco António e Cleópatra, Tristão e Isolda, Parnell e Kitty O'Shea. E, se não destrói, mata. Pode mesmo acontecer que uma pessoa tenha de enfrentar a desolação de saber que desperdiçou os melhores anos da sua vida, que se desonrou, sofreu a dor atroz do ciúme, engoliu mortificações e amarguras, esgotou todas as suas reservas de ternura, esbanjou toda a sua riqueza espiritual com uma pobre coitada, uma idiota, uma cavilha onde pendurou os sonhos e que não valia nem uma pastilha elástica.
Antes de terminar o meu discurso sabia muito bem que Isabel não estava a prestar atenção, estava, isso sim, ocupada com os seus próprios pensamentos. Porém, o comentário que fez a seguir surpreendeu-me.
- Acha que o Larry é virgem?
- Minha querida, ele tem trinta e dois anos.
- Tenho a certeza que é.
- Como pode ter a certeza?
- É o tipo de coisa que uma mulher sabe instintivamente.
- Conheci um jovem que fez uma carreira muito próspera durante anos a convencer uma beldade atrás da outra de que nunca tinha tido uma mulher. Dizia que funcionava como magia.
- Não me interessa o que possa dizer. Continuo a acreditar na minha intuição.
(...)

William Somerset Maugham, O fio da navalha, Edições Asa, Trad. de Ana Maria Chaves

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