É preciso muito cuidado com as pessoas que leram um livro. Que leram apenas um livro. Porque não é o mesmo que ouvir um disco ou ver um filme, com o devido respeito. Um livro é incomparavelmente mais rico e complexo. É avassalador. Quem está habituado já não nota. Mas um pobre indefeso que é atacado de repente por um livro pode não lhe sobreviver. "Foi um livro que mudou a minha vida", ouve-se muitas vezes dizer. E eu acredito. O potencial está lá, para o melhor ou para o pior. Geralmente para o pior.
Conheço um tipo que leu uma vez um livro sobre as lendas dos índios da Amazónia. Ficou fascinado. O protagonista era um tal Nomombziá. Pois mal teve o primeiro filho, o inopinado fanático de literatura decidiu baptizá-lo como Nomombziá. A mulher não queria mas, por amor, cedeu. Já o funcionário do Registo Civil se mostrou mais intransigente: a lei não permitia tal nome próprio. Furioso, o pai da criança descompôs toda a repartição. Insultou o país e o Estado, representante de interesses mesquinhos e rasteiros, incapaz de compreender realidades mais elevadas, gritou ele, consciente de ter encontrado a causa da sua vida.
Registou provisoriamente a criança como Noémio José, e lançou-se numa batalha jurídica que dura até hoje.
A intensidade em que um livro nos mergulha é desmesuradamente diferente de qualquer outra experiência que tenhamos tido e os efeitos são imprevisíveis. Um livro suga-nos para dentro dele e depois explode dentro da nossa cabeça. Para um cérebro impreparado, é fatal. É como um gás que preenche num ápice todo o espaço vazio. O vazio da caixa craniana.
Há homens capazes de trair, de mentir, de renunciar a tudo, por um livro. Homens capazes de matar, só porque, um dia, leram um livro.
Alguns viveram anos e anos de resistência heróica. Felizes, sem ler uma linha. Mas não os deixavam em paz.
Quando, em público, alguém lhes perguntava: "Então, o que gosta de ler?" Respondiam invariavelmente: "Não leio tanto como devia..." Já a perceber-se a culpa que lhes roía a consciência e a auto-estima.
Até que um dia, num momento em que todas as condições estavam reunidas, sucumbiram. Num momento privilegiado, que nunca mais se repetiria, talvez um momento especialmente difícil, ou de busca de sentido para a existência, ou simplesmente de insuportável tédio, entregaram-se a um esforço sobre-humano de concentração, de vontade, de coragem, de abnegação. Entregaram-se ao grande empreendimento das suas vidas: leram um livro.
No fim, é como se tivessem levado uma sova. Ficam extenuados, com um olhar um pouco excêntrico. Juram para nunca mais. Tiveram a sua conta.
Lá voltam à vida, mas nada será como dantes. O livro deu cabo deles. Fazem lembrar aqueles jovens dos anos 70 que uma vez tomaram um ácido e nunca mais regressaram à normalidade. Só que estes regressam. Ou pensam que regressam.
Muitas vezes, estas pessoas acham que, já que só lêem um livro, devem ler um bom livro - a Bíblia, o Corão, o Manifesto Comunista. Erro crasso. É o pior que poderiam fazer. Se só lêem um, que seja uma coisa fraca. Mas o ideal mesmo, se só tencionam ler um, é não lerem nenhum.
Conheço um tipo que leu uma vez um livro sobre as lendas dos índios da Amazónia. Ficou fascinado. O protagonista era um tal Nomombziá. Pois mal teve o primeiro filho, o inopinado fanático de literatura decidiu baptizá-lo como Nomombziá. A mulher não queria mas, por amor, cedeu. Já o funcionário do Registo Civil se mostrou mais intransigente: a lei não permitia tal nome próprio. Furioso, o pai da criança descompôs toda a repartição. Insultou o país e o Estado, representante de interesses mesquinhos e rasteiros, incapaz de compreender realidades mais elevadas, gritou ele, consciente de ter encontrado a causa da sua vida.
Registou provisoriamente a criança como Noémio José, e lançou-se numa batalha jurídica que dura até hoje.
A intensidade em que um livro nos mergulha é desmesuradamente diferente de qualquer outra experiência que tenhamos tido e os efeitos são imprevisíveis. Um livro suga-nos para dentro dele e depois explode dentro da nossa cabeça. Para um cérebro impreparado, é fatal. É como um gás que preenche num ápice todo o espaço vazio. O vazio da caixa craniana.
Há homens capazes de trair, de mentir, de renunciar a tudo, por um livro. Homens capazes de matar, só porque, um dia, leram um livro.
Alguns viveram anos e anos de resistência heróica. Felizes, sem ler uma linha. Mas não os deixavam em paz.
Quando, em público, alguém lhes perguntava: "Então, o que gosta de ler?" Respondiam invariavelmente: "Não leio tanto como devia..." Já a perceber-se a culpa que lhes roía a consciência e a auto-estima.
Até que um dia, num momento em que todas as condições estavam reunidas, sucumbiram. Num momento privilegiado, que nunca mais se repetiria, talvez um momento especialmente difícil, ou de busca de sentido para a existência, ou simplesmente de insuportável tédio, entregaram-se a um esforço sobre-humano de concentração, de vontade, de coragem, de abnegação. Entregaram-se ao grande empreendimento das suas vidas: leram um livro.
No fim, é como se tivessem levado uma sova. Ficam extenuados, com um olhar um pouco excêntrico. Juram para nunca mais. Tiveram a sua conta.
Lá voltam à vida, mas nada será como dantes. O livro deu cabo deles. Fazem lembrar aqueles jovens dos anos 70 que uma vez tomaram um ácido e nunca mais regressaram à normalidade. Só que estes regressam. Ou pensam que regressam.
Muitas vezes, estas pessoas acham que, já que só lêem um livro, devem ler um bom livro - a Bíblia, o Corão, o Manifesto Comunista. Erro crasso. É o pior que poderiam fazer. Se só lêem um, que seja uma coisa fraca. Mas o ideal mesmo, se só tencionam ler um, é não lerem nenhum.
Paulo Moura, Público de 7 de Janeiro de 2007
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