A inteligência e a insolidariedade andam de mãos dadas, na maior parte dos casos
Lembro-me bem que a seguir ao 25 de Abril, quando havia problemas, ninguém conhecia muito bem ninguém. A regra seguida era, as mais das vezes, "não me comprometam, que eu mal conheço a criatura".
A minha família esteve envolvida politicamente no 25 de Abril (antes e depois). Como muitas outras, teve problemas especialmente ao opor-se de forma activa à tentativa de desvio antidemocrático (e muitas vezes o foram). Mas o meu Pai tinha uma teoria interessante: devemos, nos momentos difíceis, procurar aliados com fortes princípios, mas não demasiadamente inteligentes. Quem é muito inteligente consegue sempre imaginar uma boa razão para não ser amigo e faltar à solidariedade pessoal sem, ilusoriamente, ferir os princípios. Essa justificação é não só uma desculpa para si próprio, mas também para os outros. Note-se que, também, não tem que ser uma atitude consciente, mas uma reacção instintiva de se pôr de fora: "Eu não me meto nos problemas dos outros", "realmente o que lhe têm vindo a fazer é chato, mas ele perdeu a razão na forma como reagiu"...
Com menos dramatismo, esta regra mantém-se verdadeira no nosso dia-a-dia. Podemos confiar em pessoas com fortes princípios e QI mediano, embora, também, não muito baixo; caso contrário, nem percebe o que se está a passar. Evidentemente que me orgulho de conhecer excepções a esta regra, mas conheço mais exemplos da sua veracidade, infelizmente.
É claro que na amizade há sempre uma dose de loucura que não se compadece com calculismos. Apoiar um tipo que está na mó de baixo é sincero; apoiar um ganhador também pode ser sincero, mas fica sempre a dúvida tanto em nós mesmos como nos outros.
A consciência desta regra, quase-sempre-verdadeira, levou-me a gostar de estar, por princípio, com a minoria. Para apoiar a maioria, em qualquer circunstância, penso sempre duas vezes se não estou a seguir o caminho fácil. Não faz de mim um homem feliz, mas um homem em paz e que não se envergonha de se ver ao espelho. É também por isso que sou da Académica, quando podia ser do Benfica ou do Porto, que ganham tudo. E porquê? Porque sim. Por que é que se é amigo de um amigo? Porque sim, é tudo.
Além disso, as opções morais no quotidiano raramente são decisões simples. O Judas é historicamente o estereótipo do traidor, embora, para mim, a ideia de ele se vender por 30 dinheiros seja factualmente difícil de admitir, por ser simples de mais. Será que Cristo escolheu um tipo tão mal formado que, tendo-O conhecido, O foi vender na primeira oportunidade? De qualquer forma, sujeitos que sejam iguais a este Judas não se encontram assim tão facilmente. O mundo real é muito mais subtil. E nem sempre estamos atentos.
Talvez até a história de Judas fosse algo diferente, mas nunca saberemos. Ainda há pouco foi publicado um romance curioso (mas não dramaticamente interessante, saliente-se) - O Evangelho segundo Judas - que nos dá uma interpretação alternativa. Alguém inteligente e que "trai", porque deseja ajudá-Lo, é transformado em bode expiatório, sendo os outros os verdadeiros traidores e, em especial, Pedro, que O negou três vezes.
Outra face desta moeda é o "empurrar de responsabilidades". Lembro-me, a propósito, de uma pequena história (que pode ficar como curiosidade para a História da guerra em África). Uma noite, talvez em 1972, quando me ia deitar, o meu Pai pediu-me para ficar com ele, porque havia algo de importante que iria acontecer lá para as duas da manhã. O caso era simples: tinha havido uma ofensiva em Angola e as nossas tropas estavam com problemas graves de munições, morteiros, granadas... A Força Aérea tinha-o informado, como chefe de gabinete do chefe do Estado-Maior, de que havia um 707 pronto a partir às duas da manhã, mas em sobrecarga ("as luzes vermelhas a piscar").
Com uma equipagem totalmente voluntária, o avião, dados os ventos, tinha que levantar voo sobre Lisboa. O perigo era evidente e queriam autorização superior. "Então perguntaste ao "chefe"?", inquiri. "Não, mandei eu próprio avançar; ele não poderia dizer outra coisa e, assim, se houver problema, a culpa é minha, ele pode dizer que não foi consultado." Como todos sabemos, correu bem e às duas da manhã vimos, da janela da nossa casa em Alvalade, a voar baixinho, o 707 sem problemas. Mas esta ideia de responsabilidade pessoal e institucional ficou-me marcada. Para o homem-económico dos modelos académicos, era o calculismo a funcionar contra o próprio, era um absurdo. Para os modelos da psicologia, é um comportamento de cidadania organizacional.
Penso que, sem darmos por isso, Deus ou o destino nos coloca todos os dias situações em que temos de escolher entre ser responsáveis, solidários e amigos ou sabiamente fugir às nossas responsabilidades. Sermos solidários é sê-lo por razões pouco inteligentes, ou seja, sem termos nada a ganhar, a não ser o respeito por nós próprios. É assim a vida e cada um escolhe a sua.
Luís Campos e Cunha, Público de 25.05.2007
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