O escritor angolano acaba de receber o Independent Foreign Fiction Prize, no valor de 15 mil euros, com O Vendedor de Passados
Enquanto José Eduardo Agualusa lê a abertura de O Vendedor de Passados, numa National Portrait Gallery esgotada e silenciosa, tento imaginar que sou uma das outras pessoas que ali está. Uma dos outros, aqueles que não entendem o que Agualusa diz; os outros, aqueles que não falam português. Tento ficar calada por dentro, não responder ao que ouço. Deixar a língua escorregar dos sentidos, tornar-se esquiva. Perco-a em momentos sucessivos, caem substantivos: janela; verbos: vi. Até que não sei o que quer dizer O Vendedor de Passados; O Vendedor de Passados são Ss cujas pontas se atam umas às outras, são Rs bicho-de-conta, pronunciados para dentro de si mesmos.
Eu acho uma maravilha em Londres andar de autocarro e de metro a escutar línguas em ponto de rebuçado musical; mas ontem fiquei a pensar que talvez seja ave rara. Aos ingleses, não os vejo a virar estrategicamente os ouvidos seduzidos pelo que não podem entender. Aos britânicos não os vemos a correr para as livrarias por um escritor estrangeiro. Agualusa está nos três por cento de autores traduzidos para o mercado britânico. Depois, está nos três por cento dos três por cento dos três por cento seleccionados para o prémio patrocinado pelo The Independent que distingue literatura em tradução. E indo às milésimas das percentagens, Agualusa ganhou.
Agualusa termina. Não sei o que leu, mas digo-vos: é lindíssimo. Na National Portrait Gallery desfaz-se o silêncio da incompreensão, ou como é mais bonito observar, do mistério.
Agualusa sai do pódio com a sua língua misteriosa, e dá lugar a Daniel Hahn, o tradutor, que terá uma audiência, então, que ri e acena cabeças de acordo. Este prémio também é para ele (50/50), o desembaraçador de mistérios.
Foi uma noite feliz. Fiquei feliz pelo Agualusa, mas tenho que confessar, fiquei muito mais feliz por mim própria. Foi como se também eu tivesse ganho um prémio.
Acho que estou em Londres há tempo demais - tempo, pelo menos, suficiente para ter começado a duvidar da minha própria língua. O meu prémio, ontem, foi fazer as pazes com a minha língua. Aproveitem a oportunidade todos os que andam zangados com a língua portuguesa (que os há, há, neste mundo-anglo-saxónico-cêntrico). Não consigo pensar em ninguém melhor para curar-nos de complexos. Agualusa é "o" escritor de língua portuguesa, o escritor migrante do português - de Angola para Portugal, de Portugal para o Brasil, do Brasil de volta a Angola, usando todas as combinações triangulares possíveis.
Agualusa, sempre gentil e charmoso, independentemente da língua de conversação, não perdeu a compostura. Eu perdi. Vim para casa com um sorriso exclusivo, atirando-o no metro aos outros, os que não falam a minha língua. Os que não lêem a minha língua, nem em tradução. Não sabem o que perdem.
Susana Moreira Marques, Público de 03.05.2007
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