Caco Barcellos é um jornalista brasileiro que trabalha nas favelas. Já teve programas na televisão, escreveu vários livros. Em Rota 66, investigou os esquadrões da morte da polícia de São Paulo. Em Abusado, mergulha no mundo dos traficantes de droga que operam nas favelas do Rio de Janeiro. Ambos os livros são best-sellers e revelaram o lado mais negro da realidade brasileira. Ninguém, como Caco, tinha alguma vez imergido nos submundos das grandes cidades do Brasil. Nenhum jornalista, nenhum investigador ou mesmo polícia tinha alguma vez conseguido ganhar a confiança dos líderes do mundo do crime, das autoridades marginais dos bairros pobres.
Para espanto de todos, Caco Barcellos, nos últimos 20 anos, praticamente vive nas favelas. Aprendeu os seus códigos de comportamento, a sua linguagem. Teve de convencer os seus habitantes de que não é um "X9" (agente da polícia infiltrado), nem um "vacilão" (cobarde). Mostrou que não "amarela" (ter medo) nos íngremes becos de lama do morro e que não é movido por qualquer interesse desonesto - ou seja, é apenas um "otário" que mora lá em baixo no asfalto.
Para os habitantes da favela, um cidadão honesto é considerado um otário, o que faz algum sentido. Na sua perspectiva, os ricos não são honestos e os pobres que o forem são otários. Caco é um "otário" e não se importa. É, aliás, esse o papel que escolheu e que lhe permite fazer jornalismo independente e sério. Porque é difícil passar tempo na favela e não ser conivente com os crimes que são cometidos todos os dias. Caco explicou isso aos seus interlocutores: se souber que alguém vai ser assassinado, terá a obrigação de avisar a vítima. Se assistir a um roubo, uma violação ou um massacre, ver-se-á forçado a chamar a polícia, a denunciar os culpados. Como resolver este problema?
O repórter encontrou uma solução: não quer conhecer histórias do presente, só do passado. Desde o início, pede a todos que não lhe contem nada do que está a acontecer, do que estão a fazer. Na presunção de que as actividades das personagens que investiga serão pouco recomendáveis, prefere ignorá-las. Essa é a única forma de poder manter o convívio. Já as histórias do passado são bem-vindas. Por mais sanguinárias que se revelem, não há nada a fazer. Estão consumadas. Conhecê-las não faz do jornalista cúmplice.
A estratégia é simultaneamente simples e genial. Permite penetrar subtilmente na radical inocência dos actos humanos. Compreendê-los, sem a interferência do julgamento. O segredo é permanecer um passo atrás no tempo. Olhar tudo a uma certa distância, mesmo estando muito próximo, mesmo estando lá.
Nos primeiros anos, foi duro. Uma barreira de desconfiança impedia o acesso de Caco à realidade que queria conhecer e descrever. Mas depois tudo mudou. Os habitantes da favela perceberam que o trabalho do jornalista não os prejudicava. Antes lhes dava voz e dignidade. E passaram a ser eles a disputar a atenção de Caco, a querer contar as suas histórias, apresentar as suas queixas.
Agora, desde as vielas ensopadas de esgoto do morro da Dona Marta, as crianças costumam correr atrás dele, conta Caco. Meninos de 10 ou 11 anos gritam-lhe, com ar trocista: "Eh, otário! Quer conhecer as histórias do meu passado?"
Paulo Moura, Público de 28-10-2007
1 comment:
Esta história fez-me lembrar outra: a de um médico que dá aulas na Fac de medicina na área da saúde mental e leva todos os seus alunos a trabalhar nas favelas durante o ano lectivo. Instalou-se praticamente lá e conseguiu que lhe abrissem as portas das suas casas... Todos eles trabalharam no sentido de organizar um pouco os espaços minúsculos e de prestarem os cuidados de saúde primários...Conseguiram que as pessoas se interessassem por querer aprender a cuidar dos filhos...Trata-se de um projecto que tem tido tantos resultados que passou a ter o apoio da Unesco.A ausência de qualquer posição moralista ou crítica é uma característica da actuação deste grupo.
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