Sunday, January 21, 2007
Les vieux
Même riches ils sont pauvres, ils n'ont plus d'illusions et n'ont qu'un cœur pour deux
Chez eux ça sent le thym, le propre, la lavande et le verbe d'antan
Que l'on vive à Paris on vit tous en province quand on vit trop longtemps
Est-ce d'avoir trop ri que leur voix se lézarde quand ils parlent d'hier
Et d'avoir trop pleuré que des larmes encore leur perlent aux paupières
Et s'ils tremblent un peu est-ce de voir vieillir la pendule d'argent
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, qui dit : je vous attends
Les vieux ne rêvent plus, leurs livres s'ensommeillent, leurs pianos sont fermés
Le petit chat est mort, le muscat du dimanche ne les fait plus chanter
Les vieux ne bougent plus leurs gestes ont trop de rides leur monde est trop petit
Du lit à la fenêtre, puis du lit au fauteuil et puis du lit au lit
Et s'ils sortent encore bras dessus bras dessous tout habillés de raide
C'est pour suivre au soleil l'enterrement d'un plus vieux, l'enterrement d'une plus laide
Et le temps d'un sanglot, oublier toute une heure la pendule d'argent
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, et puis qui les attend
Les vieux ne meurent pas, ils s'endorment un jour et dorment trop longtemps
Ils se tiennent par la main, ils ont peur de se perdre et se perdent pourtant
Et l'autre reste là, le meilleur ou le pire, le doux ou le sévère
Cela n'importe pas, celui des deux qui reste se retrouve en enfer
Vous le verrez peut-être, vous la verrez parfois en pluie et en chagrin
Traverser le présent en s'excusant déjà de n'être pas plus loin
Et fuir devant vous une dernière fois la pendule d'argent
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non, qui leur dit : je t'attends
Qui ronronne au salon, qui dit oui qui dit non et puis qui nous attend.
Jacques Brel, les vieux
Saturday, January 20, 2007
O referendo
Não gosto do referendo e sempre o achei perigoso e nocivo. Primeiro, porque diminuiu e desvaloriza a representação política. Segundo, porque inevitavelmente tende a deturpar o debate e a vontade do eleitorado. Nenhum problema complicado tem uma resposta de "sim" ou "não". E, como não tem, os dois lados de qualquer campanha, como, no caso, a campanha sobre o aborto, acabam por cair na "simplificação terrível" da demagogia. Basta abrir os jornais. José Pinto Ribeiro, por exemplo, disse isto: "Um ovo não tem os mesmos direitos de um frango." Fora o mau gosto, quem falou em frangos? Mas Pinto Ribeiro não foi o único. César das Neves, no seu estilo hiperbólico, avisou que "a vitória do "sim"" torna o aborto tão "normal" como comprar um "telemóvel". Uma ideia que não se distingue pela sua especial humanidade. Gentil Martins quer punir as mulheres que reincidirem em abortar. E até houve um bispo que resolveu comparar o aborto com o enforcamento de Saddam Hussein. Deus lhe perdoe.
Significativamente, os grandes militantes do "sim" e do "não" vêm quase todos da classe média. Sucede que, para a classe média, o aborto não é um problema. Conhecendo bem os meios de contracepção e a "pílula do dia seguinte", quase nenhuma mulher (ou casal) da classe média é apanhada (ou apanhado) na necessidade de escolher entre um filho e um aborto. E, se as coisas por negligência ou acidente chegarem ao pior, não recorrem com certeza ao "vão de escada". Não admira, por isso, que vejam no aborto primariamente uma questão moral, de justiça social ou dos direitos da mulher e não hesitem em entrar numa polémica de "intelectuais", abstracta e violenta e, ainda por cima, incompreensível para quem, de facto, aborta.
Mas, pior do que o resto, é que, a pretexto de permitir uma decisão directa do "povo", o referendo criou pouco a pouco um confronto azedo entre a Igreja e a esquerda. Ou, se quiserem, entre a esquerda (com o PS à frente) e os católicos. Não se percebe como, apesar da prudência do patriarca, a Igreja se deixou envolver numa causa puramente política, que não contribui para a reafirmação da sua doutrina (e pode, pelo contrário, mostrar o desinteresse do país por ela) e que, ganhe o "sim" ou ganhe o "não", nada, ou quase nada, mudará na prática. Como não se percebe que o PS, excepto por exorcismo, se meta numa querela que só serve para promover o Bloco. A Igreja julga que pode fechar a porta ao aborto e os políticos que se livraram de um grande sarilho. Erro deles. Com o "sim" ou o "não", o referendo é o princípio de uma longa guerra, não é o fim.
Vasco Pulido Valente, Público - 20 de Janeiro de 2007
Monday, January 15, 2007
Paixão
- Os moralistas tentam persuadir-nos de que os instinto sexual tem pouco a ver com o amor e tendem a falar dele como se fosse um epifenómeno.
- Que diabo vem a ser isso?
- Bem, há psicólogos que pensam que a consciência acompanha os processos mentais e é por eles determinada, mas sem ter ela própria uma influência directa sobre eles. É mais ou menos como o reflexo de uma árvore sobre a água, não poderia existir sem a árvore, mas em nada a afecta. Para mim, tudo isto não passa de um monte de palavreado para dizer que pode existir amor sem paixão. Quando as pessoas dizem que o amor pode perdurar depois de a paixão morrer, estão a falar de outra coisa, de afecto, afabilidade, comunhão de gostos e interesses, e hábito. Especialmente hábito. Duas pessoas podem continuar a ter relações sexuais por hábito exactamente pela mesma razão que sentem fome à hora a que costumam comer. Claro que pode haver desejo sem amor. Mas o desejo não é paixão. O desejo é a consequência natural do instinto sexual e não é mais importante que qualquer outra função do animal humano. É por isso que é uma patetice as mulheres fazerem um drama se os maridos têm uma aventura esporádica quando a ocasião e as circunstâncias são propícias.
- E isso só se aplica aos homens?
Sorri.
- Já que insiste, serei forçado a admitir que os direitos são iguais. A única ressalva possível é que, para o homem, uma ligação passageira desse género não tem qualquer valor sentimental, ao passo que para a mulher tem.
- Depende da mulher.
Mas eu não estava disposto a deixar-me interromper.
- A menos que o amor seja paixão, deixa de ser amor para ser outra coisa qualquer; e a paixão não aumenta com a sua satisfação, mas sim com as dificuldades. O que lhe parece que Keats queria dizer quando aconselhou o amante sobre a urna grega onde jazia a não se lamentar? «Para sempre amarás quem terá sempre encanto!» Porquê? Porque ela era inatingível e por mais que o amante a perseguisse como louco, ela continuaria a escapar-lhe, pois estavam ambos prisioneiros no mármore do que suspeito ter sido uma obra de arte sem valor. O seu amor por Larry e o dele por si era tão simples e natural como o amor de Paolo e Francesca ou Romeu e Julieta. Felizmente para si, não acabou mal. Você casou com um homem rico e o Larry correu mundo atrás do cântico das Sereias. A paixão nada teve a ver com isso.
- Com é que sabe?
- A paixão não mede consequências. Pascal disse que o coração tem razões que a razão desconhece. Se ele queria dizer o que eu penso, significa que, quando a paixão domina o coração, este inventa razões que parecem não só plausíveis, mas decisivas para provar que o amor justifica tudo, até a perdição. Convence-nos de que até a honra é bem sacrificada e a vergonha um preço módico a pagar. A paixão é destrutiva. Destruiu Marco António e Cleópatra, Tristão e Isolda, Parnell e Kitty O'Shea. E, se não destrói, mata. Pode mesmo acontecer que uma pessoa tenha de enfrentar a desolação de saber que desperdiçou os melhores anos da sua vida, que se desonrou, sofreu a dor atroz do ciúme, engoliu mortificações e amarguras, esgotou todas as suas reservas de ternura, esbanjou toda a sua riqueza espiritual com uma pobre coitada, uma idiota, uma cavilha onde pendurou os sonhos e que não valia nem uma pastilha elástica.
Antes de terminar o meu discurso sabia muito bem que Isabel não estava a prestar atenção, estava, isso sim, ocupada com os seus próprios pensamentos. Porém, o comentário que fez a seguir surpreendeu-me.
- Acha que o Larry é virgem?
- Minha querida, ele tem trinta e dois anos.
- Tenho a certeza que é.
- Como pode ter a certeza?
- É o tipo de coisa que uma mulher sabe instintivamente.
- Conheci um jovem que fez uma carreira muito próspera durante anos a convencer uma beldade atrás da outra de que nunca tinha tido uma mulher. Dizia que funcionava como magia.
- Não me interessa o que possa dizer. Continuo a acreditar na minha intuição.
(...)
William Somerset Maugham, O fio da navalha, Edições Asa, Trad. de Ana Maria Chaves
Friday, January 12, 2007
Livro único
Conheço um tipo que leu uma vez um livro sobre as lendas dos índios da Amazónia. Ficou fascinado. O protagonista era um tal Nomombziá. Pois mal teve o primeiro filho, o inopinado fanático de literatura decidiu baptizá-lo como Nomombziá. A mulher não queria mas, por amor, cedeu. Já o funcionário do Registo Civil se mostrou mais intransigente: a lei não permitia tal nome próprio. Furioso, o pai da criança descompôs toda a repartição. Insultou o país e o Estado, representante de interesses mesquinhos e rasteiros, incapaz de compreender realidades mais elevadas, gritou ele, consciente de ter encontrado a causa da sua vida.
Registou provisoriamente a criança como Noémio José, e lançou-se numa batalha jurídica que dura até hoje.
A intensidade em que um livro nos mergulha é desmesuradamente diferente de qualquer outra experiência que tenhamos tido e os efeitos são imprevisíveis. Um livro suga-nos para dentro dele e depois explode dentro da nossa cabeça. Para um cérebro impreparado, é fatal. É como um gás que preenche num ápice todo o espaço vazio. O vazio da caixa craniana.
Há homens capazes de trair, de mentir, de renunciar a tudo, por um livro. Homens capazes de matar, só porque, um dia, leram um livro.
Alguns viveram anos e anos de resistência heróica. Felizes, sem ler uma linha. Mas não os deixavam em paz.
Quando, em público, alguém lhes perguntava: "Então, o que gosta de ler?" Respondiam invariavelmente: "Não leio tanto como devia..." Já a perceber-se a culpa que lhes roía a consciência e a auto-estima.
Até que um dia, num momento em que todas as condições estavam reunidas, sucumbiram. Num momento privilegiado, que nunca mais se repetiria, talvez um momento especialmente difícil, ou de busca de sentido para a existência, ou simplesmente de insuportável tédio, entregaram-se a um esforço sobre-humano de concentração, de vontade, de coragem, de abnegação. Entregaram-se ao grande empreendimento das suas vidas: leram um livro.
No fim, é como se tivessem levado uma sova. Ficam extenuados, com um olhar um pouco excêntrico. Juram para nunca mais. Tiveram a sua conta.
Lá voltam à vida, mas nada será como dantes. O livro deu cabo deles. Fazem lembrar aqueles jovens dos anos 70 que uma vez tomaram um ácido e nunca mais regressaram à normalidade. Só que estes regressam. Ou pensam que regressam.
Muitas vezes, estas pessoas acham que, já que só lêem um livro, devem ler um bom livro - a Bíblia, o Corão, o Manifesto Comunista. Erro crasso. É o pior que poderiam fazer. Se só lêem um, que seja uma coisa fraca. Mas o ideal mesmo, se só tencionam ler um, é não lerem nenhum.
Paulo Moura, Público de 7 de Janeiro de 2007
Thursday, January 04, 2007
O Ministério pimba da Educação
A propósito do livro Desastre no Ensino da Matemática: Recuperar o Tempo Perdido, organizado por Nuno Crato, Edições Gradiva, 2006.
Os Encontros de Caparide foram uma louvável iniciativa do Ministério da Educação, que pretendia ouvir as sociedades científicas sobre o ensino de algumas disciplinas fundamentais (Português, Matemática, Filosofia) cujas deficiências a nível de currículos são gritantes. Foram tempos áureos, em que um ministro da Educação, David Justino, se preocupava com questões relacionadas com o ensino e não apenas com questões laborais e meramente organizacionais. O cerne da excelência do ensino é a solidez científica dos currículos e a formação científica dos professores, mas as discussões públicas nacionais sobre educação nunca abordam estes aspectos centrais. Até parece que tudo o resto é que é a finalidade do ensino, quando na verdade são apenas meios.
Dos Encontros de Caparide resultaram dois livros. O primeiro, dedicado à Filosofia (Para a Renovação do Ensino da Filosofia, Plátano), foi publicado no início deste ano. E este volume, dedicado à Matemática, surgiu agora. No primeiro caso, trata-se de discutir uma proposta concreta que visa melhorar a qualidade científica e didáctica dos programas de Filosofia do ensino secundário. No segundo, trata-se de discutir questões pedagógicas gerais que afectam não apenas a disciplina de Matemática, mas todas as outras.
As desastrosas doutrinas pedagógicas que imperam em Portugal, algo pós-modernaças e "construtivistas", são elitistas - apesar de fingirem o contrário - e têm por denominador comum um ódio visceral às Ciências, à Matemática, à História, à Gramática, à Literatura, à Filosofia; enfim, a tudo o que se pareça com verdadeiros conteúdos escolares. Em vez de conteúdos, fala-se de competências - como se pudesse haver competências sem conteúdos. E em vez de se distinguir cuidadosamente o que são verdadeiros conteúdos escolares do resto, procura-se transformar a escola numa espécie de entretenimento com ademanes de educação para a cidadania - tudo, menos ensinar seriamente Matemática ou Geografia ou Filosofia ou História ou Música. A origem destas ideias remonta a Rousseau e à fantasia do bom selvagem, e o que se visa é acabar com as Ciências, as Artes e as Letras, pois tudo isso corrompe a criança, que é presumivelmente mais feliz a ver televisão e a jogar à bola. Claro que tudo isto é fantasioso porque para andar a entreter os meninos com conversa fiada não é preciso escola: as crianças divertem-se muito mais fora da escola, e no mundo de hoje não têm sequer tempo para se aborrecer.
Fantasioso é também querer certificar manuais escolares quando os programas das disciplinas, que foram certamente certificados pelo próprio ministério, são o locus classicus do erro científico e do disparate pedagógico. Em muitos casos, para que um manual seja cientificamente bom e pedagogicamente adequado, é obrigado a não respeitar o programa. Isto porque os programas se degradaram de tal maneira ao longo dos anos que, hoje em dia, ao ler um programa curricular de Filosofia ou Português ou outra disciplina, uma pessoa pergunta-se onde está a Filosofia ou o Português. Os pedagogos ministeriais impuseram ao país a original perspectiva de que se pode ensinar Português sem Português, Filosofia sem Filosofia e Matemática sem Matemática. Ao mesmo tempo que os estudantes são massacrados com inúmeras disciplinas vácuas sem qualquer centralidade escolar, não têm uma educação básica em Música, nem em Literatura ou Filosofia ou Geografia. Se um estudante de 15 anos quer saber alguma coisa sobre estas coisas, tem de o fazer fora da escola. Mas se quiser brincar aos índios, pode fazê-lo nas chamadas "actividades educativas", em substituição das aulas de Matemática. É esta a educação pimba que temos.
Mas não é esta a educação que a sociedade, no seu todo, quer. Os pais, com maior ou menor formação escolar, queixam-se de que a escola não ensina. Os miúdos cantam, com razão, que "na escola nada se cria, nada se transforma, tudo se perde". Os professores andam há anos a denunciar este estado de coisas. Mas os pedagogos ministeriais vão passando de governo para governo, conseguindo ora mudar a Gramática toda, prejudicando gravemente a possibilidade da excelência do ensino do Português (se antes poucos professores sabiam e ensinavam Gramática, agora ainda menos - ou será que a ideia é mesmo essa?), ora suspender documentos que introduzem conteúdos científicos sérios num programa que carece deles (como foi o caso da badalada suspensão das Orientações de Leccionação do Programa de Filosofia). A ideia de trabalhar pelo bem do país, pela excelência do ensino, em defesa do interesse público, é alheia a estes originais pedagogos.
Numa cultura como a portuguesa, na qual nunca se valorizou realmente o conhecimento - afinal, no tempo da outra senhora, o conhecimento era um ornamento social para exibir em conversas amenas enquanto se tomava chá -, compete à escola entusiasmar os jovens e a sociedade, dando-lhes uma percepção clara do valor intrínseco do conhecimento. Mas quando é o próprio ministério da educação que não acredita no valor intrínseco do conhecimento, dificultando cada vez mais o estudo aos muitos professores sérios que temos por esse país fora, afogando-os em trabalho burocrático e em horas contabilizadas nas escolas só para marcar ponto, que se pode esperar do nosso futuro? Como poderemos recuperar o tempo perdido, tanto no que respeita ao ensino da Matemática como no que respeita às outras disciplinas? Seja qual for a estratégia, o primeiro axioma tem de ser este: o conhecimento tem valor intrínseco, em si e por si, e é do maior interesse público protegê-lo e transmiti-lo, e ensinar a produzi-lo - e só a escola pode fazer isso, ainda que infelizmente o tenha de fazer contra o Ministério pimba da Educação.
Desidério Murcho, Professor de Filosofia - Público de 4 de Janeiro de 2007