Thursday, April 12, 2007

E você, está apaixonado pela pessoa errada?

A dúvida é tão antiga quanto as relações amorosas: será que me apaixonei pela pessoa certa? E se for a errada, como saberei? A psicóloga Ana Cristina Oliveira levanta a ponta do véu: "A pessoa errada é aquela que provoca o desejo de lhe agradar de tal maneira que nos força a ser diferentes do que somos". Não é de todo uma pessoa má. "Pode ser a errada para uma, mas a certa para outra", explica a psicóloga que na semana que passou deu uma conferência sobre o tema "Porque é que nos apaixonamos pelas pessoas erradas?".

Desengane-se, pois, quem pensou que os amores errados eram os de Romeu e Julieta ou de Callas e Onassis.

Se se revê no discurso "já não sei quem sou, nos últimos 15 anos não comprei nada a meu gosto e fui passar férias a sítios que detesto", então as campainhas deveriam soar. Acontece a quem tem baixa auto-estima, isto é, não se aceita muito bem como é. E precisa de projectar uma imagem daquilo que não é.

Ele é extrovertido, ela é o oposto, mas não quer que se descubra. É aqui que começa a sabotagem e até mesmo a mentira. Eis um exemplo: pouco tempo depois de começar o enamoramento, numa sexta-feira à noite, ele decide ceder ao apelo de sair com os amigos. Sem saber, ela prepara um jantar especial em casa, à luz das velas. E quando se apercebe que vai passar o serão sozinha prefere não deixar transparecer a desilusão. Imagine-se o diálogo ao telemóvel: "Hoje vou sair com o meu grupo de amigos". Do outro lado da linha, silêncio. "O que é que tens? Nada". A frase, diz Ana Cristina Oliveira, bem poderia ser o título daquela conferência. Um dos elementos do casal sente-se compelido a mentir ou fica em silêncio quando sente o controlo absoluto do outro.

"Aqueles dois não podem sobreviver", sustenta Ana Cristina Oliveira. E se a escolha pela pessoa errada for sistemática? "Há uma patologia do padrão relacional", isto é, pessoas com baixa auto-estima apaixonam-se por seres semelhantes. Como ambos projectam uma imagem daquilo que não são "estão sempre a cobrar isso um ao outro porque nenhum aceita aquilo que é", explica a psicóloga.

Já o carácter complementar num casal parece funcionar: um é introvertido (mas socialmente apresenta-se como extrovertido) e o outro é extrovertido mas dá ares de tímido. Só que, segundo Ana Cristina Oliveira, esta relação saudável é muito mais dinâmica e dá muito mais trabalho: "Têm que investir continuamente e esforçarem-se por serem verdadeiros e autênticos".

A preguiça é, pois, um barómetro de uma relação saudável. Não é bom sinal que haja "um a servir e outro a trabalhar", "uma vítima e um carrasco". As relações erradas são também muito intensas e muito fechadas ao exterior. Parece assim claro o diagnóstico de uma relação saudável: "uma relação que parece simples, que não dá trabalho nenhum, é errada".

A pergunta "Porque é que nos apaixonamos pelas pessoas erradas?" aguçou a curiosidade dos media e atraiu 160 pessoas, a maioria mulheres, que encheram numa sexta-feira à noite a sala do Teatro A Barraca, em Lisboa. Muito mais gente disposta a pagar sete euros e meio do que para a palestra anterior sobre o "Sexo e a Comida", também promovida pela Associação Lavoisier para angariar fundos.

Será que as pessoas estão assim tão infelizes com a sua relação e vieram tentar perceber porquê? "Penso que não. Há uma ansiedade de compreensão sobre como é que são os mecanismos de comportamento de cada um", justifica a psicóloga e também presidente da associação. Só assim, diz, se explica a venda de livros como "Os homens são de Marte, as mulheres são de Vénus".

Por outro lado, as pessoas adoram saber uma coisa negativa sobre si próprias porque ficam com a sensação de que são melhores. "É como ver os acidentes de carro: as pessoas passam devagarinho para se sentirem aliviadas de não serem elas próprias". Por isso também é comum preencher os testes das revistas sobre personalidade ou relações amorosas.

Ao longo de quase três horas, a oradora tentou descodificar as relações "que continuam a ser um grande mistério". E, num tom descontraído que divertiu o público, desceu às raízes do "apaixonamento".

Os jogos dos afectos começam em bebé. A criação de vínculos com o pai, com a mãe e, mais tarde, a rivalidade desta com a educadora. Com a adolescência, chegam os surtos do "apaixonamento". E com a maior frequência de sempre. Depois, perdem-se com a idade.

Por volta dos 17 anos, o apaixonado é a antítese da família onde cresceu. É uma atitude contra os pais. É a altura em que o rico se apaixona pelo pobre ou vice-versa; o urbano-depressivo pela transmontana típica. No primeiro almoço de domingo com a família, os pais ficam em estado de choque. Mas se não mostrarem muita hostilidade, provavelmente, o filho parte para outra.

No segundo "apaixonamento", aparece o inverso, ou seja, o candidato muito parecido com os pais. Tão próximo ao ponto de arrumar a panela de pressão no mesmo lugar que a mãe. A família fica encantada, mas a pessoa é errada. Não está no "timing" certo.

Só a terceira seria a bem escolhida. A primeira semana de "apaixonamento" é uma espécie de estado gripal, há uma sintonia perfeita. Depois as diferenças começam a fazer sentir-se. Afinal, repete-se o padrão da pessoa errada. Como é se interrompe este ciclo? Acontece uma catástrofe. A pessoa recorre a uma terapeuta ou tem a sorte de lhe aparecer a pessoa certa, explica Ana Cristina Oliveira. Nesse caso, tem de haver um território comum e respeitar o território do outro. "Não é um casal em que os dois vão sempre ao supermercado, é um casal que discute - e acham que é sinal que a relação está má", esclarece.

Falar de "apaixonamento" numa sociedade bombardeada pelo sexo parece quase desfasado. Como diz Ana Cristina Oliveira, "o "apaixonamento" é a cereja em cima do bolo das relações". E apesar de ser "um estado de angústia insuportável" parece ser muito desejado. "É como a lua-de-mel: é muito desejada, mas quando chegamos lá parece que tudo corre mal. Nunca é tão boa a não ser nas fotografias".


Texto de Sofia Rodrigues, Páginas Xis, Pública, Público 8 de Abril de 2007

Friday, April 06, 2007

As boas e os maus

Tal como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres

Jorge de Sena, depois de zurzir longamente o romance Domingo à Tarde de Fernando Namora, rematava assim: "E concluamos com uma nota comprovativa da total isenção com que foi escrito este artigo: eu nunca li nenhum romance de Namora, e muito menos este de que me ocupei. De onde deve concluir-se que a diferença fundamental entre a literatura autêntica e a literatura de consumo está em que, para falarmos desta última, não é necessário lê-la."

O mesmo digo do programa A Bela e o Mestre no ar na TVI. Nunca o vi nem faço tenções de ver mas, como se trata de um programa de consumo, até de grande consumo, para falar dele nem preciso vê-lo. Contaram-me o pior e imagino até que possa ser pior do que me contaram.

O título remete para A Bela e o Monstro, um conto ancestral reescrito no século XVIII por Madame de Beaumont e que deu um bem conhecido filme. Mas as belas do programa pouco têm que ver com a menina do filme. Esta era até bastante inteligente, lia livros e, no castelo do monstro, ficou excitadíssima com a enorme biblioteca. E é a sensibilidade ligada à inteligência que a levou a amar o monstro, fazendo com que ele deixasse de o ser. Era bem diferente das raparigas estupidamente bonitas por fora e completamente ocas por dentro que imagino - repito que não vi - fazem as delícias dos voyeurs televisivos.

Já muita gente se insurgiu contra a imagem estereotipada e retrógrada da mulher que o programa transmite. A Bela e o Mestre é um verdadeiro regresso ao passado. No final do século XIX, Ramalho Ortigão, o macho lusitano que se bateu com Antero de Quental em duelo antes de se juntar aos "vencidos da vida", escrevia: "Pobres mulheres! Elas são-nos bem inferiores (...) pela anatomia dos ossos e dos músculos e pela constituição do cérebro. Elas têm a cabeça mais pequena, como as raças inferiores (...) não sabem compor óperas e nunca chegam a entender a matemática." Ramalho falava sem ponta de ironia: a mulher era considerada por ele e pelos contemporâneos um ser inferior. Sabemos hoje que estava redondamente enganado, e os seus descendentes intelectuais, que ainda não passaram do século XIX, estão tão enganados como ele. Ou melhor: estão ainda mais enganados, pois durante o tempo que passou ficou demonstrada a desrazão ramalheana. Quanto à ópera, não sei o suficiente, mas posso assegurar que alguns dos nossos melhores matemáticos são mulheres. Algumas bastante belas, se é que isso interessa.

Um mestre aparece identificado com um monstro na versão portuguesa deste telelixo. Como muitos e muito bem já defenderam as mulheres da acusação de ignorância, mas ainda ninguém defendeu os mestres, não da acusação de fealdade, mas da de maldade que está implícita no título português (um monstro é não só feio como mau!), venho eu defendê-los. Apesar de não ter o grau de mestre, tenho o de doutor, e sinto-me no mesmo saco. As belas são as boas e nós somos os maus. Mas que mal fizemos nós? E por que motivo o mestre ou, por maioria de razão, o doutor aparece associado ao terror e ao mal?

Esta injusta associação tem, de facto, uma longa história, na qual se incluem o Doutor Fausto, um homem de ciência que fez um pacto com o demónio, e o Frankenstein, um estudante de ciências que criou um monstro no laboratório. A propósito, foi uma rapariga inglesa de 19 anos, Mary Shelley, que escreveu, pouco antes de Ramalho nascer, Frankenstein, um clássico universal, ao passo que o escritor português, goste-se ou não dele, nunca escreveu uma obra que atravessasse fronteiras.

Mas muito tempo passou desde o Doutor Fausto e o Frankenstein. E, assim como as belas já não são vistas como eram, já é tempo de mudar a má fama dos mestres!

Carlos Fiolhais, Público 30.03.2007