A dúvida é tão antiga quanto as relações amorosas: será que me apaixonei pela pessoa certa? E se for a errada, como saberei? A psicóloga Ana Cristina Oliveira levanta a ponta do véu: "A pessoa errada é aquela que provoca o desejo de lhe agradar de tal maneira que nos força a ser diferentes do que somos". Não é de todo uma pessoa má. "Pode ser a errada para uma, mas a certa para outra", explica a psicóloga que na semana que passou deu uma conferência sobre o tema "Porque é que nos apaixonamos pelas pessoas erradas?".
Desengane-se, pois, quem pensou que os amores errados eram os de Romeu e Julieta ou de Callas e Onassis.
Se se revê no discurso "já não sei quem sou, nos últimos 15 anos não comprei nada a meu gosto e fui passar férias a sítios que detesto", então as campainhas deveriam soar. Acontece a quem tem baixa auto-estima, isto é, não se aceita muito bem como é. E precisa de projectar uma imagem daquilo que não é.
Ele é extrovertido, ela é o oposto, mas não quer que se descubra. É aqui que começa a sabotagem e até mesmo a mentira. Eis um exemplo: pouco tempo depois de começar o enamoramento, numa sexta-feira à noite, ele decide ceder ao apelo de sair com os amigos. Sem saber, ela prepara um jantar especial em casa, à luz das velas. E quando se apercebe que vai passar o serão sozinha prefere não deixar transparecer a desilusão. Imagine-se o diálogo ao telemóvel: "Hoje vou sair com o meu grupo de amigos". Do outro lado da linha, silêncio. "O que é que tens? Nada". A frase, diz Ana Cristina Oliveira, bem poderia ser o título daquela conferência. Um dos elementos do casal sente-se compelido a mentir ou fica em silêncio quando sente o controlo absoluto do outro.
"Aqueles dois não podem sobreviver", sustenta Ana Cristina Oliveira. E se a escolha pela pessoa errada for sistemática? "Há uma patologia do padrão relacional", isto é, pessoas com baixa auto-estima apaixonam-se por seres semelhantes. Como ambos projectam uma imagem daquilo que não são "estão sempre a cobrar isso um ao outro porque nenhum aceita aquilo que é", explica a psicóloga.
Já o carácter complementar num casal parece funcionar: um é introvertido (mas socialmente apresenta-se como extrovertido) e o outro é extrovertido mas dá ares de tímido. Só que, segundo Ana Cristina Oliveira, esta relação saudável é muito mais dinâmica e dá muito mais trabalho: "Têm que investir continuamente e esforçarem-se por serem verdadeiros e autênticos".
A preguiça é, pois, um barómetro de uma relação saudável. Não é bom sinal que haja "um a servir e outro a trabalhar", "uma vítima e um carrasco". As relações erradas são também muito intensas e muito fechadas ao exterior. Parece assim claro o diagnóstico de uma relação saudável: "uma relação que parece simples, que não dá trabalho nenhum, é errada".
A pergunta "Porque é que nos apaixonamos pelas pessoas erradas?" aguçou a curiosidade dos media e atraiu 160 pessoas, a maioria mulheres, que encheram numa sexta-feira à noite a sala do Teatro A Barraca, em Lisboa. Muito mais gente disposta a pagar sete euros e meio do que para a palestra anterior sobre o "Sexo e a Comida", também promovida pela Associação Lavoisier para angariar fundos.
Será que as pessoas estão assim tão infelizes com a sua relação e vieram tentar perceber porquê? "Penso que não. Há uma ansiedade de compreensão sobre como é que são os mecanismos de comportamento de cada um", justifica a psicóloga e também presidente da associação. Só assim, diz, se explica a venda de livros como "Os homens são de Marte, as mulheres são de Vénus".
Por outro lado, as pessoas adoram saber uma coisa negativa sobre si próprias porque ficam com a sensação de que são melhores. "É como ver os acidentes de carro: as pessoas passam devagarinho para se sentirem aliviadas de não serem elas próprias". Por isso também é comum preencher os testes das revistas sobre personalidade ou relações amorosas.
Ao longo de quase três horas, a oradora tentou descodificar as relações "que continuam a ser um grande mistério". E, num tom descontraído que divertiu o público, desceu às raízes do "apaixonamento".
Os jogos dos afectos começam em bebé. A criação de vínculos com o pai, com a mãe e, mais tarde, a rivalidade desta com a educadora. Com a adolescência, chegam os surtos do "apaixonamento". E com a maior frequência de sempre. Depois, perdem-se com a idade.
Por volta dos 17 anos, o apaixonado é a antítese da família onde cresceu. É uma atitude contra os pais. É a altura em que o rico se apaixona pelo pobre ou vice-versa; o urbano-depressivo pela transmontana típica. No primeiro almoço de domingo com a família, os pais ficam em estado de choque. Mas se não mostrarem muita hostilidade, provavelmente, o filho parte para outra.
No segundo "apaixonamento", aparece o inverso, ou seja, o candidato muito parecido com os pais. Tão próximo ao ponto de arrumar a panela de pressão no mesmo lugar que a mãe. A família fica encantada, mas a pessoa é errada. Não está no "timing" certo.
Só a terceira seria a bem escolhida. A primeira semana de "apaixonamento" é uma espécie de estado gripal, há uma sintonia perfeita. Depois as diferenças começam a fazer sentir-se. Afinal, repete-se o padrão da pessoa errada. Como é se interrompe este ciclo? Acontece uma catástrofe. A pessoa recorre a uma terapeuta ou tem a sorte de lhe aparecer a pessoa certa, explica Ana Cristina Oliveira. Nesse caso, tem de haver um território comum e respeitar o território do outro. "Não é um casal em que os dois vão sempre ao supermercado, é um casal que discute - e acham que é sinal que a relação está má", esclarece.
Falar de "apaixonamento" numa sociedade bombardeada pelo sexo parece quase desfasado. Como diz Ana Cristina Oliveira, "o "apaixonamento" é a cereja em cima do bolo das relações". E apesar de ser "um estado de angústia insuportável" parece ser muito desejado. "É como a lua-de-mel: é muito desejada, mas quando chegamos lá parece que tudo corre mal. Nunca é tão boa a não ser nas fotografias".
Texto de Sofia Rodrigues, Páginas Xis, Pública, Público 8 de Abril de 2007