Sunday, December 31, 2006

O elixir da eterna juventude

Estou velho!
dói-me o joelho
dói-me parte do antebraço
dói-me a parte interna
de uma perna
e parte amiga
da barriga
que fadiga
o que é que eu faço?
escolho o baço ou o almoço?
vira o osso
dói o pescoço
é do excesso
do ex-sexo
alvoroço
reboliço
perco o viço
já soluço
já sobrosso
esmiúço os meus sintomas
e já agora, do meu médico os diplomas
esmiúço a consciência
e já agora, apresento a penitência

Ah que estou arrependido
de ter feito e de ter tido
ai oração, ora seja
como a que ouvi na igreja

Mea culpa, mea culpa
minha máxima desculpa
é ter vindo p´ro presente
conservado em aguardente

Quero ser p´ra sempre jovem
as minhas células movem
uma campanha eficaz
água benta e água-raz

O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p´ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

Vou implorar aos apóstolos
mas é pior, que desgosto-os
com tanto pecado junto
não lhes pega nem o unto

Vou recorrer aos meus santos
esses, ao menos, são tantos
que há-de haver um que me acuda
senão ainda tenho o Buda

Maomé vai à montanha
o papa, ninguém o apanha
na Rússia, o rato rói a rolha
venha o diabo e escolha

O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p´ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

Misticismo agora à parte
envelhecer é uma arte
"arte-nova", "arte-final"
numa luta desigual

Só me vou pôr de joelhos
ante o mais velho dos velhos
e perguntar-lhes o segredo
de p´ra ele inda ser cedo

Quando o espelho me mira
já nem o chapéu me tira
deito-lhe a língua de fora
pisco o olho e vou-me embora

O elixir da eterna juventude
esse que quer que tudo mude
p´ra que tudo fique igual
estava marado
falsificado
é desleal!

Sérgio Godinho - O Elixir Da Eterna Juventude

Monday, December 11, 2006

"Psiquiatras, psicólogos e outros doentes"


Saber a que se dedicam os psiquiatras é tão difícil como saber a que se dedicam os psicólogos. Antes de ir ao consultório do meu cunhado Ernesto, eu tinha apenas uma noção muito vaga das funções da psiquiatria. Depois de ir à sua consulta e a mais outras dez ou doze consultas de psiquiatras e psicólogos já nem sequer tenho essa vaga noção. Cheguei à conclusão de que ninguém sabe com muita certeza o que é a psiquiatria ou a psicologia, nem aquilo que as diferencia, e que a principal ocupação de psiquiatras e psicólogos é tratar de averiguar quem são eles e a que se dedicam. É como se o meu pai e eu, em vez de nos preocuparmos em vender elevadores e em melhorar os nossos produtos e serviços, dedicássemos metade do tempo a dissertar sobre a nossa função na sociedade e sobre a história dos elevadores no Ocidente. Bem, na realidade isso é o que faz o meu pai.

Eu nunca perguntei a nenhum psiquiatra ou psicólogo - Deus me livre de semelhante atrevimento - em que consistia o seu trabalho, evidentemente. Mas são eles que sistematicamente se empenham em explicar-me qual é a sua função, quais as sua obrigações, quais os seus desafios na construção de um homem melhor no século XXI. É incrível. Entramos no consultório e, antes de nos perguntarem como estamos ou como nos corre a vida, já nos estão a dizer coisas como: «Um psicólogo não é ninguém importante, é apenas esse amigo com quem nos atrevemos a falar.» Mas quando já estamos há algum tempo com eles, também nos podem dizer coisas como: «Olhe, a minha função como psicólogo não é a de dizer-lhe tudo o que quer ouvir»; ou: «Você engana-se se pensa que eu só estou aqui para lhe passar as receitas.»

Eu creio que no fundo estas pessoas têm um problema de identidade e que todas elas necessitariam de um tratamento psicológico, se eventualmente conseguissem pôr-se de acordo sobre o que isso significa. Pela minha parte, desisti há muito tempo de obter uma ideia clara sobre a Ordem e preferi agarrar-me à ideia que já tinha do psiquiatra como a pessoa que cura as doenças mentais, mesmo que eles não parem de me dizer o contrário, ou o contrário do contrário.

Rodrigo Muñoz Avia, Ambar, 2006 (início do capítulo 3)