Sunday, August 13, 2006

Todo o Mundo

Personagens: Ninguém, Todo-o-mundo, Berzebu e Dinato.
[Estão em cena dois diabos, Berzebu e Dinato, este preparado para escrever]
Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda buscando algua cousa que se lhe perdeu. E logo após ele um homem vestido como pobre. Este se chama Ninguém, e diz:

NinguémQue andas tu i buscando
Todo o Mundo Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando perfiando
por quão bom é perfiar.
NinguémComo hás, nome, cavaleiro?
Todo o MundoEu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro,
e sempre nisso me fundo.
NinguémE eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Berzebu para DinatoEsta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.
DinatoQue escreverei, companheiro?
BerzebuQue Ninguém busca consciência,
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém para Todo o MundoE agora que buscas lá?
Todo o MundoBusco honra muito grande.
NinguémE eu virtude, que Deos mande
que tope co' ela já.
Berzebu para DinatoOutra adição nos acude:
escreve logo e a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
NinguémBuscas outro mor bem qu' esse?
Todo o MundoBusco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fezesse
NinguémE eu quem me repreendesse
em cada coisa que errasse.
Berzebu para DinatoEscreve mais.
DinatoQue tens sabido?
BerzebuQue quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém para Todo o MundoBuscas mais, amigo meu?
Todo o MundoBusco a vida e quem ma dê.
NinguémA vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Berzebu para DinatoEscreve lá outra sorte
DinatoQue sorte?
BerzebuMuito garrida.
Todo o Mundo busca a vida,
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo para NinguémE mais queria o paraíso,
sem mo ninguém estorvar.
NinguémE eu ponho-me a pagar
quanto devo pera isso.
Berzebu para DinatoEscreve com muito aviso.
DinatoQue escreverei?
BerzebuQue Todo o Mundo quer paraído
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo para NinguémFolgo muito de enganar,
e mentir naceo comigo.
NinguémEu sempre verdade digo,
sem nunca me desviar.
Berzebu para DinatoOra escreve lá, compadre
não sejas tu preguiçoso!
DinatoQuê?
BerzebuQue Todo o Mundo é mentiroso,
e Ninguém diz a verdade.
Ninguém para Todo o MundoQue mais buscas?
Todo o MundoLisonjar.
NinguémEu sou todo desengano.
Berzebu para DinatoEscreve, ande la mano!
DinatoQue me mandas assentar?
BerzebuPõe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.


Gil Vicente, in Auto da Lusitânia (1532)

1 comment:

De Tudo Um Pouco said...

muito bom, sou apaixonada por obras de Gil Vicente.
c quiseres conversar, me add no msn ou me escreva um e-mail.
tamypotter@hotmail.com