O incidente Santana Lopes/SICN e a eleição de Luís Filipe Menezes para presidente do PSD coincidiram com o 15º aniversário da TV privada. Três temas num só. Começando em Menezes: entre ele e Marques Mendes houve um desequilíbrio televisivo fatal para o segundo. Nos noticiários, cujo discurso é controlado pela selecção jornalística (e não só), Mendes aparecia regularmente, mas Menezes também, ao seguir a estratégia de Lopes: criar «TV opportunities» para tomar posições contrárias a Mendes ou para o criticar. Assim, com a colaboração televisiva, Menezes há muito que se inventou como alternativa a Mendes.
Fora dos noticiários, Mendes esteve em alguns programas de entrevista, de grande tensão e muito controlados pelos entrevistadores, não proporcionando empatia do espectador com os políticos. E Menezes? Estava desde 2004 no Frente-a-Frente da SICN, ambiente mais relaxado e possibilitando essa empatia. Mendes não tinha, e Menezes tinha, um canal de grande liberdade discursiva e de comunicação permanente com os militantes e espectadores. Em resumo: depois de Santana Lopes, Paulo Portas e José Sócrates, Menezes é o quarto líder partidário eleito por causa da televisão.
E o incidente Lopes-SICN? (Ponto prévio: a SICN cortou a entrevista com incompetência, pois para o evitar bastaria o recurso habitual da divisão do ecrã: manteria Lopes falando enquanto mostrava na outra metade a chegada de Mourinho, assim dando os dois eventos em simultâneo.) O caso revelou momentânea presença de espírito de Lopes. A revolta contra critérios editoriais da SICN foi o seu único acto assinalável na campanha do PSD e em nada se relacionou com ela.
O caso permite debater critérios editoriais, o directo e como interromper uma notícia para dar outra. Em teoria é questionável que a chegada dum treinador de futebol interrompa uma entrevista política. Mas não há teoria sem verificação no concreto: o treinador em causa é um dos melhores e mais mediáticos do mundo, regressando à «pátria» depois da mais espectacular saída de um clube de que há memória; existia a hipótese (remota) de ele dizer algo mais importante que Lopes. Este tem há décadas uma presença pertinaz nos ecrãs como comentador de futebol, comentador político (SIC e RTP) e concorrente dum concurso na SIC; inventou-se e reinventou-se para estar sempre na berra mediática, e os media deram-lhe tudo; a sua carreira política fez-se de aparecer na babugem do dia, de dicas erráticas, do diz que diz e não disse, do eu sou assim e eu e eu e eu. Faz o que for preciso para aparecer: se para aparecer for preciso desaparecer do estúdio da SICN, ele levanta-se e sai. De facto: desde Junho que Lopes não aparecia na lista dos 10 protagonistas das notícias televisivas e, por ter desaparecido da entrevista, entrou de rompante para 5º lugar, protagonizando 16 notícias em quatro dias do período de 24 a 30.09.
Invenção da TV, em boa parte da SIC e SICN, Lopes agiu como a criatura em revolta contra o criador. Mas revejam-se as imagens: depois de terminada a ligação ao aeroporto, não só se manteve em estúdio dois minutos (!) como agradeceu repetidamente, como que deixando a porta aberta a muitos e muitos convites futuros para lá voltar.
Mais notável é que tantos milhares, incluindo leitores do PÚBLICO, se congratulassem com o gesto. A asfixia futebolística nos noticiários não gera protestos iguais; não há protestos em massa como este contra 15 minutos de Madail ou Scolari abrindo três noticiários; dois dias depois do episódio Lopes, não se ouviram protestos contra a RTPN por emitir um programa de futebol repetido enquanto a SICN dava em directo a vitória e o discurso de Menezes; também não há protestos quando, nas noites eleitorais, se interrompe um político para dar o ecrã a outro.
Porquê a comoção neste caso? Porque se deu mais importância ao futebol do que à política; porque Lopes fez o mesmo que a SICN, esta usou o directo para o interromper, ele usou o directo para a interromper; porque Lopes pareceu recusar o palco mediático; porque muita gente já não aceita a arrogância da TV em geral de dona de palco, microfone e imagem, ela, sim, a verdadeira treinadora ou seleccionadora de quem é «alguém» no país, incluindo os chefes partidários como o próprio Lopes, Sócrates, Portas ou Menezes.
O caso simbolizou a percepção da TV como arrogante mas em decadência: anos atrás, Lopes não se teria levantado por precisar da TV como fulcro da ascensão política; hoje, com a internet e os muitos canais de TV alternativos, já pode ser «corajoso» pois o seu gesto chega a toda a gente por outros meios: em quatro dias, no you-tube as imagens foram vistas mais de 336.000 vezes.
Acaba um ciclo, ao fim de 15 anos? Hora de balanço: a mudança política e social do país por causa da TV em 15 anos foi bem maior e mais significativa do que a mudança dos conteúdos televisivos. A programação actual, estava, em boa parte, pressuposta nas grelhas da RTP, quase 100 por cento comerciais quando começaram SIC e TVI: já lá estavam as novelas, sitcoms, futebol, concursos, publicidade em intervalos e programas, converseta. Hoje, a RTP permanece a empresa de TV comercial de Estado em concorrência com as TVs comerciais privadas.
As alterações na programação deveram-se à concorrência. O português passou a dominar as emissões, mas o medo de inovar nos conceitos de programas generalizou os formatos estrangeiros em versão lusa; a comunicação tornou-se quase só feminina e, nos últimos anos, a sensibilidade gay entrou em força na TV generalista; grelhas, programas e até rubricas são ditados só pela audimetria; programas com menos audiência, «populares» ou «elitistas», acabam ou empurram-se para horários invisíveis. Tudo isso estava em potência na RTP de 1992; ela lá chegaria sem TV privada.
Ainda por causa da concorrência, atendeu-se mais às escolhas dos espectadores; criaram-se novas elites secundárias, como a dos parasitas do ecrã que vivem de e por aparecerem, mas a abertura de noticiários, concursos e talk-shows a novos protagonistas de fora das elites tradicionais foi bem menor do que aparenta, como prova Felisbela Lopes em A TV das Elites (Campo das Letras, 2007).
A mudança essencial trazida pela TV privada foi a da vida política: a acção política resulta do que a televisão mostra; a acção política faz-se para a televisão mostrar; a crescente dissolução dos partidos deve-se à quase inutilidade das estruturas quando a comunicação se não processa por elas mas pelos media de massas; a importância crescente do protagonista partidário a tal se deve, pois é ele que aparece; os cidadãos participam mais em acções cívicas fora dos partidos porque a TV as mostra e obtêm resultados (estrada, policiamento, fecho de escola, etc.).
A TV não agiu só na vida política mas no próprio sistema político: a abertura das autárquicas às listas independentes resulta da personalização da política e da caducidade das estruturas partidárias enquanto forma única de comunicação entre políticos profissionais, militantes e cidadãos; a eleição directa dos líderes é obra da televisão e faz-se na televisão. Sem a abertura da TV a novos canais nunca Sócrates, Lopes, Portas e Menezes teriam chegado tão facilmente às chefias dos partidos.
Eduardo Cintra Torres (Público de hoje)